Despoletar - A praga da asneira
Por Antunes Ferreira
VOCÊS SABEM ALGUMA COISA de tropa? Estiveram no serviço militar? Consultaram, ainda que episodicamente, uma Enciclopédia? Mesmo a Wikipedia? E como vamos de conhecimentos de Português? Leram o Fernando Pessoa? Já ouviram, pelo menos, citá-lo quando escreveu que «a nossa língua é a nossa Pátria»?
Homessa. Que saraivada de perguntas. E, ainda por cima, aparentemente, não teriam muito a ver umas com as outras. Está visto: o cronista pifou, apagou as lâmpadas incandescentes, apesar das campanhas da EDP, ainda não as substituiu pelas económicas, de longa duração e poupadoras de energia. Resumindo: está cada vez mais parvo.
Como visado, o escriba tem (ainda) o direito de se defender. Isto não é a Carolina Michaёlis. Nem se está a utilizar qualquer telemóvel, apenas um teclado inofensivo de um modesto computador XP, por obra e graça de Mr. Bill Gates. Mas pago, não de graça. Daí que não venham para aqui chamados quer a aluna, quer a professora, muito menos o jovem que filmou, empolgado, a cena canalha. Estrumeira. Sarjeta. No more comments.
Que pretende, então, o escrito? Alto, e pára o baile. O dito cujo está a abarrotar de pontos de interrogação, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Ter-se-á, pois, de seguir em frente, sem considerandos mais ou menos espúrios, se não mesmo ininteligíveis. Já basta o que basta, e, ainda que não pareça, pode continuar-se a pensar que a linha recta é a que une mais directamente dois pontos.
Continua a ser expressão usada (e abusada) que é um crasso erro, de qualquer ponto de vista. É o calino despoletar. Oradores, escribas, jornalistas, locutores, políticos, numa esmagadora maioria são militantes dessa asneira. Despoletar uma situação. A agressão despoletou consequências péssimas. O golo despoletou a recuperação do clube que perdia ao intervalo.
No fundo, uma constante: algo originou que um processo se activasse, se desenvolvesse, ou aumentasse a sua importância ou dimensão. Ou seja, algo fez explodir a coisa que se encontrava mais ou menos em estado larvar. Está profundamente errada a utilização do termo. Profunda, não, completamente errada. Se a análise fosse feita em termos religiosos, tratar-se-ia de um pecado capital. Em termos jurídicos, um crime, no mínimo por ignorância.
Tome-se uma granada, por exemplo, uma de mão, defensiva. O seu corpo metálico, em forma de pinha recortada (invólucro), é «recheado» de explosivo. Ao ser deflagrada, são os estilhaços dela que deverão atingir o inimigo. Para que isso funcione, rezam os manuais da arma, acentuam os instrutores, que os utentes têm de usar cuidados especiais. Se os não respeitarem, podem eles próprios ser vítimas dela. Muitíssimas vezes isso tem acontecido, infelizmente.
Explique-se o funcionamento do artefacto bélico. Para que o detonador origine a explosão é necessário que algo o percuta. Assim no interior da granada, existe um objecto seu componente; pode dizer-se de modo mais simples, que é uma espécie de prego com uma ponta, naturalmente. É o percussor. Nem mais, nem menos.
A granada está armada, com a espoleta (às vezes existem duas) no seu lugar, a qual quando detona faz explodir o artefacto bélico, por força do movimento vertical e para baixo do percussor que acciona o detonador. Este é envolvido por uma mola helicoidal e é ele que origina a deflagração da espoleta. Na extremidade dele, no cimo da granada, tem um orifício seguro por uma «argola» ou pino, que trava a acção da mola. Além disso, uma alavanca colocada lateral e longitudinalmente no exterior da arma é outra garantia de segurança para o militar que a arremessa.
Deste modo, o atirador, retira o pino, segurando firmemente a alavanca para que a mola não prima de imediato o percussor sobre o detonador. Leva o braço atrás, conta até dez, para temporalizar o acto e lança a granada para o inimigo. O restante, é óbvio. A não ser assim, não existiriam tais objectos letais. O que, aliás, seria excelente.
Ora muito bem. Espoletar uma granada é ter a espoleta colocada no seu lugar, pronta a actuar, ou seja a originar a explosão. Se o Português ainda tem regras – e tem-nas, ainda que bastas vezes esquecidas, ignoradas ou, até, vilipendiadas – o que se ensinava sobre o prefixo des era que da sua junção à palavra base resultava a negativa desta.
Organizado. Desorganizado. Elegante. Deselegante. Ocupar. Desocupar. Não vale a pena continuar com exemplos, aliás despiciendos. Espoletar. Despoletar. Sendo assim, despoletar significa tirar a espoleta de uma granada. O que quer dizer que ela não explodirá, pois fica inerme. Sem grande margem para dúvidas, refira-se. Militares e linguistas, ou vice-versa, não podem estar mais de acordo.
Donde, a expressão estar a ser utilizada (e já há bastante tempo, infelizmente) com significado absolutamente oposto ao que suposta e aparentemente se pretende com ela. Despoletar é desarmar, é impedir que a detonação se verifique, é, em boa hora, impedir que corra sangue. É abortar a violência.
Este, hoje, é um texto que foge ao habitual. Já lá vão uns anos, um Senhor chamado António Valdemar escreveu sobre o tema no Diário de Notícias e o escriba, na altura seu camarada de lides jornalísticas, mais uma vez aprendeu com ele. Refere-se aqui a circunstância, citação que se entende inteiramente justa, correcta e, portanto, em absoluto, pertinente.
Foi, no entanto, a voz que clamou no deserto. Valdemar, um Homem cultíssimo, sabedor, cabeça prestigiada, memória prodigiosa, maçon sem peias, académico de mérito, foi à estacada, esgrimiu com mestria, desancou nos ignorantes – mas o erro crasso prosseguiu, dir-se-ia, impávida e tranquilamente. Debalde, por conseguinte.
Nós, os Portugueses, somos assim. A calinada, de tantas vezes repetida, entrou no corriqueiro do dia-a-dia. Esmerou-se na alarvidade linguística. Para ser mais correcto: esmerámo-nos, pois o cronista é tão Português como todos os restantes cidadãos. E compatriotas. Só que, no caso vertente, tenta usar correctamente o despoletar. Quer na Língua, quer na guerra, há que despoletar, sim, mas no sentido correcto.
Homessa. Que saraivada de perguntas. E, ainda por cima, aparentemente, não teriam muito a ver umas com as outras. Está visto: o cronista pifou, apagou as lâmpadas incandescentes, apesar das campanhas da EDP, ainda não as substituiu pelas económicas, de longa duração e poupadoras de energia. Resumindo: está cada vez mais parvo.
Como visado, o escriba tem (ainda) o direito de se defender. Isto não é a Carolina Michaёlis. Nem se está a utilizar qualquer telemóvel, apenas um teclado inofensivo de um modesto computador XP, por obra e graça de Mr. Bill Gates. Mas pago, não de graça. Daí que não venham para aqui chamados quer a aluna, quer a professora, muito menos o jovem que filmou, empolgado, a cena canalha. Estrumeira. Sarjeta. No more comments.
Que pretende, então, o escrito? Alto, e pára o baile. O dito cujo está a abarrotar de pontos de interrogação, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Ter-se-á, pois, de seguir em frente, sem considerandos mais ou menos espúrios, se não mesmo ininteligíveis. Já basta o que basta, e, ainda que não pareça, pode continuar-se a pensar que a linha recta é a que une mais directamente dois pontos.
Continua a ser expressão usada (e abusada) que é um crasso erro, de qualquer ponto de vista. É o calino despoletar. Oradores, escribas, jornalistas, locutores, políticos, numa esmagadora maioria são militantes dessa asneira. Despoletar uma situação. A agressão despoletou consequências péssimas. O golo despoletou a recuperação do clube que perdia ao intervalo.
No fundo, uma constante: algo originou que um processo se activasse, se desenvolvesse, ou aumentasse a sua importância ou dimensão. Ou seja, algo fez explodir a coisa que se encontrava mais ou menos em estado larvar. Está profundamente errada a utilização do termo. Profunda, não, completamente errada. Se a análise fosse feita em termos religiosos, tratar-se-ia de um pecado capital. Em termos jurídicos, um crime, no mínimo por ignorância.
Tome-se uma granada, por exemplo, uma de mão, defensiva. O seu corpo metálico, em forma de pinha recortada (invólucro), é «recheado» de explosivo. Ao ser deflagrada, são os estilhaços dela que deverão atingir o inimigo. Para que isso funcione, rezam os manuais da arma, acentuam os instrutores, que os utentes têm de usar cuidados especiais. Se os não respeitarem, podem eles próprios ser vítimas dela. Muitíssimas vezes isso tem acontecido, infelizmente.
Explique-se o funcionamento do artefacto bélico. Para que o detonador origine a explosão é necessário que algo o percuta. Assim no interior da granada, existe um objecto seu componente; pode dizer-se de modo mais simples, que é uma espécie de prego com uma ponta, naturalmente. É o percussor. Nem mais, nem menos.
A granada está armada, com a espoleta (às vezes existem duas) no seu lugar, a qual quando detona faz explodir o artefacto bélico, por força do movimento vertical e para baixo do percussor que acciona o detonador. Este é envolvido por uma mola helicoidal e é ele que origina a deflagração da espoleta. Na extremidade dele, no cimo da granada, tem um orifício seguro por uma «argola» ou pino, que trava a acção da mola. Além disso, uma alavanca colocada lateral e longitudinalmente no exterior da arma é outra garantia de segurança para o militar que a arremessa.
Deste modo, o atirador, retira o pino, segurando firmemente a alavanca para que a mola não prima de imediato o percussor sobre o detonador. Leva o braço atrás, conta até dez, para temporalizar o acto e lança a granada para o inimigo. O restante, é óbvio. A não ser assim, não existiriam tais objectos letais. O que, aliás, seria excelente.
Ora muito bem. Espoletar uma granada é ter a espoleta colocada no seu lugar, pronta a actuar, ou seja a originar a explosão. Se o Português ainda tem regras – e tem-nas, ainda que bastas vezes esquecidas, ignoradas ou, até, vilipendiadas – o que se ensinava sobre o prefixo des era que da sua junção à palavra base resultava a negativa desta.
Organizado. Desorganizado. Elegante. Deselegante. Ocupar. Desocupar. Não vale a pena continuar com exemplos, aliás despiciendos. Espoletar. Despoletar. Sendo assim, despoletar significa tirar a espoleta de uma granada. O que quer dizer que ela não explodirá, pois fica inerme. Sem grande margem para dúvidas, refira-se. Militares e linguistas, ou vice-versa, não podem estar mais de acordo.
Donde, a expressão estar a ser utilizada (e já há bastante tempo, infelizmente) com significado absolutamente oposto ao que suposta e aparentemente se pretende com ela. Despoletar é desarmar, é impedir que a detonação se verifique, é, em boa hora, impedir que corra sangue. É abortar a violência.
Este, hoje, é um texto que foge ao habitual. Já lá vão uns anos, um Senhor chamado António Valdemar escreveu sobre o tema no Diário de Notícias e o escriba, na altura seu camarada de lides jornalísticas, mais uma vez aprendeu com ele. Refere-se aqui a circunstância, citação que se entende inteiramente justa, correcta e, portanto, em absoluto, pertinente.
Foi, no entanto, a voz que clamou no deserto. Valdemar, um Homem cultíssimo, sabedor, cabeça prestigiada, memória prodigiosa, maçon sem peias, académico de mérito, foi à estacada, esgrimiu com mestria, desancou nos ignorantes – mas o erro crasso prosseguiu, dir-se-ia, impávida e tranquilamente. Debalde, por conseguinte.
Nós, os Portugueses, somos assim. A calinada, de tantas vezes repetida, entrou no corriqueiro do dia-a-dia. Esmerou-se na alarvidade linguística. Para ser mais correcto: esmerámo-nos, pois o cronista é tão Português como todos os restantes cidadãos. E compatriotas. Só que, no caso vertente, tenta usar correctamente o despoletar. Quer na Língua, quer na guerra, há que despoletar, sim, mas no sentido correcto.
Etiquetas: AF
1 Comments:
Há já alguns anos li também um texto do Miguel Esteves Cardoso, no extinto DNa, sobre esta palavra.
Pelo sim pelo não, apesar de a ver repetida por toda a parte, desde então que deixei de a usar.
Se usar a palavra espoletar, ainda corro o risco de ser (mal) corrigido e de entrar em discussões desnecessárias.
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