Náusea
Por Helena Matos
ATÉ AO APARECIMENTO de Josef Fritzl a questão nunca se me colocara. Não, não me estou a referir ao cativeiro em que manteve a filha – um acontecimento tão hediondo quanto imprevisível – mas sim ao facto de os crimes de natureza sexual com elevadas taxas de reincidência serem apagados definitivamente do registo criminal. Acreditava eu, e creio que muitos milhões de outros portugueses, que esse apagamento não era total. Vivia portanto na ilusão que sendo um adquirido civilizacional que o registo criminal não pode infamar pela vida fora quem cumpriu a sua pena isso implicaria que seriam salvaguardadas algumas situações futuras, por exemplo a possibilidade de alguém que foi condenado por violação dum menor pretender candidatar-se a ser pai adoptivo. Acabei de perceber que não é assim. Mas voltemos ao princípio.
Quando o mundo monstruoso do senhor Fritzl se abriu diante dos nossos olhos percebeu-se que este homem, apesar de ter sido condenado por violação, pudera adoptar os netos – ou melhor dizendo os filhos-netos – pela simples e prosaica razão de que a legislação austríaca prevê que os delitos sexuais sejam apagados do registo criminal quinze anos no máximo após o cumprimento da pena e assim, de cadastro limpo, se apresentou Josef Fritzl diante da segurança social que lhe atribuiu a tutela dos netos.
E em Portugal como se procede nesta matéria? Alguém que tenha sido condenado por violação ou abuso sexual dum menor poderá adoptar uma criança? A minha ronda de perguntas começou no fim da passada semana. Aqueles que, como eu, não estudaram Direito, respondiam-me: “Não é possível! Tu estás doida”. Enfim, eu ia argumentando que também me parecia não ser possível mas que na Áustria era e que, neste domínio, o que nós temos como razoável está longe de ser assim considerado pelos especialistas. Como esquecer, por exemplo, que, no ano passado, em França, a investigação à violação e assassínio dum menino de cinco anos levou a que se constatasse que um psiquiatra dos serviços prisionais receitara Viagra ao autor do crime? Este era um violador reincidente que, pouco tempo antes deste sair da prisão, comunicou ao médico em questão que tinha problemas de erecção.
Contudo e apesar de tudo, ainda foi com cepticismo que parti para a leitura do decreto 57/98 que trata do registo criminal. Este estabelece que são canceladas do registo criminal «as decisões que tenham aplicado pena principal ou medida de segurança, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos, ou superior a 8 anos, respectivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime;»
Tendo em conta as subtilezas deste tipo de linguagem pedi ajuda a quem de Direito ou seja a quem o estudou. Rapidamente me diziam que só podiam responder sim às seguintes perguntas: Pode concluir-se que os violadores ou pedófilos que tenham cumprido penas inferiores a 5 ou 8 anos ficam com o cadastro limpo entre 5 a dez anos depois do cumprimento da pena? E caso isto aconteça esse apagamento do registo criminal é total e irreversível? Por exemplo, caso pretendam adoptar uma criança ou trabalhar numa escola quinze anos depois esses dados já não constam do registo criminal desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime?
Mesmo assim tive dificuldade em acreditar que isto fosse possível. Repetia para mim mesma que, pelo menos nos casos de adopção, certamente que existia a possibilidade de a segurança social ter acesso a uma informação diferenciada daquela que se presta, por exemplo, para tirar licença de caça. E assim resolvi contactar a Procuradoria Geral da República. A resposta chegou rápida e concisa: «Pode, de facto, dizer-se que decorridos os prazos de 5/7/10 anos sobre a extinção da pena, a condenação deixa de constar no registo criminal, não sendo passível de conhecimento para qualquer efeito. O cancelamento é definitivo (salvo se houver, entretanto, outra condenação). O regime do artigo 15.º da Lei 57/98 tem natureza genérica, não sendo excluídos quaisquer tipos de crime (nem outro regime especial existe para crimes como os referidos na questão).» Os crimes referidos na questão que coloquei à PGR eram concretamente a violação e a pedofilia. Finalmente dou-me por vencida: violadores e abusadores podem adoptar crianças em Portugal. É nestes dias que entendo melhor o significado da palavra náusea.
«Público» de 6 Mai 08 - c.a.a.
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1 Comments:
E é neste sórdido mundo que vivemos!
O que comentar?
Sinceramente não sei,eu que sou contra a pena de morte e, que tantas vezes discuto com o meu rapaz de 19 anos e que é a favor e que do alto da sua teoria me diz;"pois a mãe diz isso,porque nunca nos aconteceu nada,havia de algum malandro ter abusado de mim ou do meu irmão,a ver se a mãe não mudava logo de opinião"
Será que tenho que lhe dar razão?
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