4.5.08

A arte da irrelevância

Por António Barreto
“BOA NOITE, ZÉ”. Este “Zé” também pode ser Manuel, Clara, António, Ana, Júlio, Judite, Rodrigo ou Alberta... É a maneira como os “enviados” ou “correspondentes” dos serviços de informação das televisões entram “em directo” nos boletins noticiosos. Dirigem-se directamente ao locutor de serviço e esforçam-se por dar à notícia um ar simultaneamente familiar, informal e tenso. Qualquer dos canais serve de exemplo. Começou por ser uma moda, acabou por se transformar num padrão. Os canais de televisão amam os directos. Dá mais proximidade. É mais instantâneo. É mais genuíno. Desastre ou festa, conferência de imprensa ou surto de meningite, tempestade ou atentado terrorista: desde que possível, o enviado ou correspondente faz um directo. Quando calha, há mesmo diálogo com o “pivot” do telejornal. Frequentemente, segue-se (ou antecede) “uma peça” previamente gravada, sobre o mesmo assunto, pelo mesmo enviado, não sendo aliás certo que haja diferenças ou evolução entre “a peça” e “o directo”. No meio das notícias, em “directo real” ou “directo gravado”, aí vem o correspondente no Líbano, em Timor Leste ou na praia da Luz... Chegam a fazer-se “directos” para que o correspondente, depois de repetir o “Boa noite Zé”, afirme que “ainda” não se sabe o que aconteceu...
Os “directos” são, em geral, de má qualidade. Os melhores profissionais tentam fazer trabalho decente, mas a maioria traz o que tem ou lhe encomendam: emoções, sensação de ineditismo e a certeza de que “está em cima do acontecimento”. Mas, naturalmente, gaguejam, hesitam e exprimem-se mal. Pedem licença para interromper pessoas que estão a fazer o seu trabalho ou que fazem a sua vida e disparam perguntas. As respostas são, em maioria, irrelevantes, nada adiantam à notícia ou ao esclarecimento. Há alguns meses, quando a tensão ia alta com o caso da menina inglesa desaparecida, chegámos a ouvir uma “enviada” dizer, em directo pois claro, que nesse dia não tinha acontecido nada e que a “monotonia” só tinha sido quebrada por um grupo de “motards” que viera mostrar a sua solidariedade. Quase todos os dias vemos “directos” deste género: ainda não se sabem os resultados, as pessoas por quem se espera ainda não chegaram, o julgamento ainda não acabou ou o senhor que está a ser interrogado pela polícia ainda não saiu.
Muitos dos enviados tentam mostrar, pela transpiração, pelos trajes ou pelo ambiente em redor, que estão em situação escaldante: se forem ouvidos choros, gritos, tiros ou explosões, tanto melhor. Quando se trata de conferências de imprensa, em especial feitas por políticos, mas os gestores também começam a aprender, o “directo” marca as horas, as pessoas submetem-se aos ditames do “enviado” e da estação de televisão. Após algumas frases ditas pelo interessado, o “enviado” retoma o microfone e faz um resumo do que já se ouviu. Ouve-se este por cima do conferencista. Quem está na sala deve aliás ouvir os dois, quantas vezes o repórter mais alto do que o conferencista.
Os “casos dramáticos” e as “tragédias humanas” são os preferidos. Suicídio, crime passional, acidente de automóvel, rapto de criança, assalto a banco ou desastre natural são momentos excelentes para os “directos”. Mas um caso de tifo numa aldeia, uma intoxicação alimentar, mesmo benigna, numa escola ou um incêndio de pneus velhos num pardieiro também vêm a jeito. Os boletins de notícias tentam começar sempre por aí. Só depois surgem as notícias de interesse geral, os factos políticos, o desporto e, eventualmente, as notícias internacionais. Durante o boletim, quando é possível, a anteceder ou suceder ao espaço publicitário, entram novos casos humanos, aliás, prévia e repetidamente anunciados com tons de sensação. Como os serviços noticiosos duram uma hora na RTP e mais ainda nos outros canais, é necessário encher, “meter chouriços” como se diz no meio, entrevistar espontâneos, ouvir o povo e pôr emoções no ar. Todos nos lembramos do desastre de Castelo de Paiva que foi o momento crucial de fundação do novo estilo, que já rondava pelas televisões, mas que ainda não tinha o estatuto de pérola profissional. Foi nessa altura que vimos “enviados” a tentar fazer chorar parentes das vítimas ou simples testemunhas e quase agredi-los de microfone em riste. Esta última semana em que todos os canais comemoraram (é o caso de dizer...) o primeiro aniversário do desaparecimento da criança da praia da Luz, uma coincidência pôs logo em agitação as redacções: uma menina de Valpaços teria desaparecido em Matosinhos. As “brigadas” do “directo” apresentaram-se logo ao serviço. Para sua infelicidade, a menina apareceu pouco tempo depois. Foi uma frustração!
Os serviços de notícias dos três canais ditos “generalistas”, sem excepção, são cada vez mais divertimento e espectáculo e cada vez menos informação. Desapareceram os comentários inteligentes e informados. Foram-se os especialistas que podem ajudar a compreender. Acabou o recurso a documentação e arquivo que permita colocar os factos em contexto e percebê-los melhor. A explicação serena e fundamentada foi abolida. As notícias internacionais, quando há, foram resumidas a rumores e resumos incompreensíveis, a não ser que se trate de terrorismo, pedofilia ou grande desastre. As notícias deixaram de ter o tempo necessário de reflexão. Os jornalistas fazem cada vez menos a “edição” das “peças”, das imagens e das reportagens dos “enviados” e “metem os brutos”, isto é, põem no ar as sequências em bruto, tal como chegaram dos “enviados” ou das agências.
O “directo” é o maior incentivo à preguiça que se conhece. Dispensa trabalho e reflexão. Não precisa de inteligência ou estudo. É o que existe de melhor como veículo de emoções, até de histerismo. É finalmente o factor de mutação da notícia em espectáculo. É a autorização para não pensar nem investigar. É a troca deliberada, feita pelos editores e pelos jornalistas, de reflexão, do estudo, da investigação e da edição, todo este trabalho que deveriam ser os pergaminhos do jornalismo, pela aparência do imediato, do espectáculo, da concorrência entre canais e do despacho. É o reino das emoções em directo, o contrário mesmo do que deveria ser o bom jornalismo. O “directo” não é a causa primeira, mas é o instrumento de degradação da televisão. É, sobretudo, a destruição da informação e da inteligência.
«Retrato da Semana» - «Público» de 4 Mai 08

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5 Comments:

Blogger R. da Cunha said...

Subscrevo, por inteiro, o artigo, que já havia lido.
É exasperante assitir ao Telejornal do canal 1 da RTP, o único que vejo (para além da SICN). Assuntos sem qualquer interesse, directos vazios de conteúdo, entrevistas deslocadas (o Jardel, um dia destes, é um exemplo). Muito pouco do que ali acontece é notícia de telejornal. Deve ser o que "o meu povo gosta".

4 de maio de 2008 às 22:23  
Blogger josé ricardo said...

parabéns pelo texto. existe, de facto, um decréscimo de qualidade dos nossos telejornais. e é pena, pois penso que temos gente capaz de alterar este estado de coisas. mas quando nos preocupamos mais com a cópia do "estrangeiro" (basta olhar para os cenários dos telejornais na Europa e vêmos que bebem todos pela mesma cartilha...) e muito menos com o "fazer diferente" é sinal que entramos numa apatia cada vez mais crescente.

um abraço,
j. ricardo
www.rescivitas.blogspot.com

5 de maio de 2008 às 00:00  
Blogger A. A. Barroso said...

Bem prega Frei Tomás... Mas o sr Barreto tem pouca autoridade para pregar sobre o tema em questão pois a sua intervenção pública, salvo raras excepções, fundamenta-se em irrelevâncias e discursos deprimentes de um homem azedo e cheio de frustrações. E quando não anda inspirado descobre cartas anónimas para lançar lama sobre outros cidadãos sem curar de saber se é justa a sua pregação. Um pouco de vergonha na cara não lhe ficaria nada mal

5 de maio de 2008 às 12:44  
Blogger náufrago do tempo e lugar said...

Para mim tanto se me daria que a “peça” ou o “directo” fossem dados como antepasto, como repasto, ou como pospasto. Ser-me-ia indiferente, desde que não me saísse do bolso o pagamento da refeição. Só que sou eu e mais meia-dúzia de milhões como eu que a pagam. Na RTP 1, pois claro! Que há muito devia ter encerrado as portas. Com os privados posso eu bem.

A sorte dos governantes alternados, ao insistirem nos gastos astronómicos com tal canal, prende-se, acima de tudo, com o facto de “ser sereno” o povo a cujos bolsos despudoradamente arremetem. E vejam só a desvergonha! Assaltam-nos através das facturas mensais da EDP! Que não lhes basta, pois que o tantálico canal bebe, ainda – e como bebe! -, do inesgotável (?) rio que são os nossos impostos.

E dizer-se que foi o “almirante sem medo” quem teve a infeliz ideia de sacar, por este diabólico método (através da fornecedora de electricidade) a salazarenta taxa (então de radiodifusão sonora)!

Só que as taxas são fixas. Não podem ser alteradas. Havia, assim, a necessidade imperiosa de modificar a denominação “taxa”. Dar-lhe outro título que permitisse o aumento anual do saque.

Tornava-se urgente elaborar uma Lei. Que não se fez esperar (desconheço se alguma voz se levantou na AR contra tal iniquidade). De que lei falo? Ah, sim, da Lei 30/2003, de 22 de Agosto. Barrosista, pois. A ideia, a brilhante ideia, foi de Manuela Ferreira Leite. O governo de Sócrates e, em especial Teixeira dos Santos, agradecem.

Ferreira Leite teve o desplante de aumentar astronomicamente, e logo no ano que se seguiu à sua brilhante lei, a taxa salazarenta. Dos 278$00 (cerca de 1,39 €) em que a taxa se mantinha imutável através de vários anos, a taxa, agora com o nome pomposo de “Contribuição Áudio-visual” subiu para 1,60€, ou seja, um aumento de 15% (mais 23% na data actual, ou seja, 1,71 €). No mesmo ano em que a Função Pública foi aumentada de zero euros, que o mesmo é dizer, diminuída do valor correspondentes à inflação .

Para cúmulo destas desvergonhas, então não é que o governo de Sócrates, pela voz do seu augusto ministro dos Assuntos Parlamentares, que transporta consigo o pomposo nome de Augusto S.S, decidiu acrescentar o IVA à referida Contribuição Áudio-Visual, sustentando-se em “pareceres do Centro de Estudos Fiscais e de uma entidade independente, que consideraram que «a contribuição audiovisual” é tecnicamente sujeita a IVA».?
Mas o ministro explica que o Governo tomou duas decisões políticas. «Que a taxa do IVA fosse a mais reduzida, ou seja, de 5% e que no ano de introdução da cobrança de IVA (2008), a contribuição audiovisual não fosse actualizada». Daria vontade de rir a bandeiras despregadas, não fora o caso digno de pranto permanente. Que não tarde a vassourada. Seja ela de varredura socrática, ferreira-láctica, ou afins.

Temos assim, e mais uma vez, impostos sobre contribuições e impostos sobre impostos: IVA sobre a “Contribuição Áudio-Visual”, IVA sobre o “Imposto Sobre Produtos Petrolíferos", IVA sobre o “Imposto Automóvel”, IVA sobre o “Imposto Sobre o Tabaco”, IVA sobre o "Imposto sobre Álcool e Bebidas Alcoólicas” e assim sucessivamente, até ao infinito, pelo que o acrónimo IVA deveria ser substituído por “E VÃO”, porquanto já "SE FORAM", em tais destemperos inconstitucionais, em conformidade com os técnicos da área e só para me reportar ao ano de 2007, mais de 1.300 milhões de euros. (http://dn.sapo.pt/2006/11/03/economia/portugueses_pagam_1300_milhoes_iva_s.html)


Lamento a extensão do comentário. Mas que fazer, se é tamanha a extensão do saque!

5 de maio de 2008 às 15:03  
Blogger Blondewithaphd said...

O que eu gosto mesmo é das meninas recém-licenciadas, muito estrelinhas que estão na TV, já viste mãe?, que mal sabem falarm não têm um pinguinho de inteligência e fazem as perguntinhas mais insípidas e parvinhas que imaginar se possa: "Então agora com a subida dos preços dos combustíveis, o que é que o Sr. tem a dizer?". "Pois, minha menina eu acho que está mal". Muito interessante e esclarecedor!

5 de maio de 2008 às 18:29  

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