A Quadratura do Circo
13 de Maio
Por Pedro Barroso
OS SENHORES TAVARES e Simões de Andrade (nomes alterados por razões eclesiasticamente compreensíveis) olharam-se e entenderam-se sem palavras. Estava combinado. Marcaram o jantar de cerimónia, luxo e compromisso. A República alastrara como ideia e controlava o País. Havia que lutar contra tamanha e tão estrangeirada escumalha. Unir forças.
Famílias antigas e prestigiadas do Alto Ribatejo, nos limites de uma Beira Litoral ainda longe do mar, ambas possuíam, com efeito, extensas propriedades bravias e sem aproveitamento. A serra d’Aire no mais belo e inútil de suas paisagens penhascosas e rudes, de terra vermelha e barrenta e pedra calcária. Pedra em tal quantidade que não se conseguia arar uma jeira de jeito sem embotar o ferro nelas, ou que uma junta de bois não tropeçasse.
Havia de se fazer qualquer coisa. Rentabilizar tais perdidos sítios, recebidos de heranças de família e afinal, sem rendimento algum. Algo que atraísse gente para ali. Algo que pusesse tais áridas fazendas com procura. Mas quê? – E cofiavam os fartos bigodes de lavradores abastados e donos da terra. Ah! Senhores, mas que haveria de ser?
O jantar decorreu entre baixelas de prata e criadagem muda, elas de colarinhos engomados e avental rendado, eles de libré. No fim do solene e amigável repasto, os homens afastaram-se um pouco, acendendo os charutos e vieram os sais para as Senhoras. Foi quando Dona Perpétua Simões de Andrade (nome alterado por razão eclesiasticamente compreensível) suspirou e disse, entre a ironia e o desalento:
- “Pôr aqueles matos a render? Ai, minha Nossa Senhora! Acho que era preciso um milagre!” – e fungou elegante um pouco de rapé. Dona Genoveva Tavares, embora um pouco obnubilada pelo ponche, aquiesceu, entre o arroto e a sonolência.
Num relâmpago, o Morgado Tavares olhou o Dr. Simões de Andrade, sobrecujo devotado esposo da sobrecuja chorosa dama. Via-se que uma ideia lhe rebentara no crânio, como um estalo de inteligência.
- Um milagre! Caramba! É isso mesmo! Mais que isso - uma fábrica de milagres! O que é que você acha? – atirou, entusiasmadíssimo.
Secretos preparos antecederam os contactos, escolhas e arranjos necessários a tão rocambolesca encenação. Depois de escolhidos os protagonistas, havia que anulá-los. Fazê-los desaparecer ou enclausurá-los. Para que nunca se percebesse o grau de intrujice, e a fama das visões nunca fosse posta em causa.
Assim se cumpriu a história. Por artes maiores de menos clareza, a pneumónica levou a uns e a clausura eterna era o destino da que sobrou. E as criaturas contaram tudo direitinho, na sua fé e candura pastoril. O problema era o Bispo, provavelmente seduzido pelos republicanos, sabe-se lá. Reticente, o ingrato. E o próprio Patriarca, retorcendo o nariz.
Enfim. A história, embora com encenação amadora, intermitente e hesitante, acabou por pegar. O Estado e a Igreja acabaram por aceitar a utilidade de tal culto. A utilidade e os dividendos. E mais. Acrescentaram todos os ingredientes do mistério. Segredos. Milagres. Peregrinações. Liturgias bonitas.
E mesmo apócrifos e tergiversos, os mistérios enredaram o Mundo ao potenciarem o saber do que se deseja para nosso próprio acreditar. E as nossas fraquezas comandam a nossa capacidade de temer. Alguém de superior que interceda por nós é uma espécie de cunha no Além. Dá sempre jeito. Quem não tem medo da doença e da morte? Saibamos pois aprender a acreditar. E ignoremos as incongruências.
Sim. Que linguagem era aquela tão metafórica e cuneiforme que ninguém entendia e um dos pobres nem sequer ouvia? Que figura existia afinal? Que luz emanava, e onde? Em cima duma azinheira? A mãe de Deus aqui? Mas ela não estava em toda a parte, como pertence e é uso na sua ilustre e poderosa família? Porque não via a multidão absolutamente nada e apenas as febris crianças continuavam a clamar que sim senhor, estava ali uma Senhora de branco? Porquê branco? Eu, por exemplo, adoro amarelo! Quero uma Virgem de amarelo, faz favor. Mesmo que seja a castíssima mãe de Deus, que raio, uma pessoa pode vestir cores bonitas! Como alertar para os perigos do comunismo, se as aparições são em Maio e a revolução só seria em Outubro do mesmo ano? Como saber que premonições afectariam um Papa, e qual deles? E já agora, em que ano futuro a saber? Cheira a Luis de Matos, em baratinho.
Mas nós precisamos disso. Mais importante que a Fé é a necessidade de precisar de Fé.
Sempre que passo a Fátima, no meio daquelas lojas de vendilhões do Templo, com o negócio da cera eternamente reciclada, com os bracinhos e as perninhas e as Nossas Senhorinhas fluorescentes, sinto no ar, de certo modo, um kitsch lamentável. Ex-libris de um povo inculto e culturalmente pouco interessado no debate teosófico. É isso. Acredita. E chega.
E como o negócio alastrou e é hoje mundial, caramba! Enchamos então os olhos de lágrimas ateias ao vermos tanto acreditar. Como eu gostava de estar convosco, almas simples e não perguntativas! Como eu gostaria de rezar ave marias descalço e acreditar que isso me resolvia todos os problemas! Como é lindo ver uns milhares com velas, sem pensar no negócio. Como é lindo ver o acenar no adeus. Parabéns aos encenadores que ao longo dos anos têm melhorado o evento. Que lindas são as capas negras da Opus Dei. Que dignidade e que perfis! Que sinceras e belas são as lágrimas, na pele enrugada de velhices acreditantes e puras.
Juro que não brinco. A sério. Que pena tenho!
Como me comove o vosso tão simples e elementar acto maior de acreditar! Ficará por ali alguma coisa? Sempre que passo a Fátima abro a janela do carro e aspiro profundamente. Abro as mãos tentando alcançar alguma tonelada de quilo-fé no agarrar do ar. Em vão.
O acreditar é uma força incontrolável e telúrica. Reservada a gente que não quer saber da história de duas famílias ricas de Torres Novas e Ourém, e dos seus secretos e perversos interesses fundiários plenamente satisfeitos.
Calculem. Naquela noite construíram, sem saber como, uma cidade. E uma fé para o Mundo.
E eu eternamente condenado às portas da perdição, por conhecer a história e ter nascido ali ao pé da porta.
Senhor perdoai-me, porque eu sei como se faz!
E se possível, bafeja-me com a tua proverbial tolerância. Preciso muito, podes crer. Sê generoso. Sou assim mas não faço por mal, acredita.
Cumprimentos cá da terra, humildemente,
Pedro Barroso
Famílias antigas e prestigiadas do Alto Ribatejo, nos limites de uma Beira Litoral ainda longe do mar, ambas possuíam, com efeito, extensas propriedades bravias e sem aproveitamento. A serra d’Aire no mais belo e inútil de suas paisagens penhascosas e rudes, de terra vermelha e barrenta e pedra calcária. Pedra em tal quantidade que não se conseguia arar uma jeira de jeito sem embotar o ferro nelas, ou que uma junta de bois não tropeçasse.
Havia de se fazer qualquer coisa. Rentabilizar tais perdidos sítios, recebidos de heranças de família e afinal, sem rendimento algum. Algo que atraísse gente para ali. Algo que pusesse tais áridas fazendas com procura. Mas quê? – E cofiavam os fartos bigodes de lavradores abastados e donos da terra. Ah! Senhores, mas que haveria de ser?
O jantar decorreu entre baixelas de prata e criadagem muda, elas de colarinhos engomados e avental rendado, eles de libré. No fim do solene e amigável repasto, os homens afastaram-se um pouco, acendendo os charutos e vieram os sais para as Senhoras. Foi quando Dona Perpétua Simões de Andrade (nome alterado por razão eclesiasticamente compreensível) suspirou e disse, entre a ironia e o desalento:
- “Pôr aqueles matos a render? Ai, minha Nossa Senhora! Acho que era preciso um milagre!” – e fungou elegante um pouco de rapé. Dona Genoveva Tavares, embora um pouco obnubilada pelo ponche, aquiesceu, entre o arroto e a sonolência.
Num relâmpago, o Morgado Tavares olhou o Dr. Simões de Andrade, sobrecujo devotado esposo da sobrecuja chorosa dama. Via-se que uma ideia lhe rebentara no crânio, como um estalo de inteligência.
- Um milagre! Caramba! É isso mesmo! Mais que isso - uma fábrica de milagres! O que é que você acha? – atirou, entusiasmadíssimo.
Secretos preparos antecederam os contactos, escolhas e arranjos necessários a tão rocambolesca encenação. Depois de escolhidos os protagonistas, havia que anulá-los. Fazê-los desaparecer ou enclausurá-los. Para que nunca se percebesse o grau de intrujice, e a fama das visões nunca fosse posta em causa.
Assim se cumpriu a história. Por artes maiores de menos clareza, a pneumónica levou a uns e a clausura eterna era o destino da que sobrou. E as criaturas contaram tudo direitinho, na sua fé e candura pastoril. O problema era o Bispo, provavelmente seduzido pelos republicanos, sabe-se lá. Reticente, o ingrato. E o próprio Patriarca, retorcendo o nariz.
Enfim. A história, embora com encenação amadora, intermitente e hesitante, acabou por pegar. O Estado e a Igreja acabaram por aceitar a utilidade de tal culto. A utilidade e os dividendos. E mais. Acrescentaram todos os ingredientes do mistério. Segredos. Milagres. Peregrinações. Liturgias bonitas.
E mesmo apócrifos e tergiversos, os mistérios enredaram o Mundo ao potenciarem o saber do que se deseja para nosso próprio acreditar. E as nossas fraquezas comandam a nossa capacidade de temer. Alguém de superior que interceda por nós é uma espécie de cunha no Além. Dá sempre jeito. Quem não tem medo da doença e da morte? Saibamos pois aprender a acreditar. E ignoremos as incongruências.
Sim. Que linguagem era aquela tão metafórica e cuneiforme que ninguém entendia e um dos pobres nem sequer ouvia? Que figura existia afinal? Que luz emanava, e onde? Em cima duma azinheira? A mãe de Deus aqui? Mas ela não estava em toda a parte, como pertence e é uso na sua ilustre e poderosa família? Porque não via a multidão absolutamente nada e apenas as febris crianças continuavam a clamar que sim senhor, estava ali uma Senhora de branco? Porquê branco? Eu, por exemplo, adoro amarelo! Quero uma Virgem de amarelo, faz favor. Mesmo que seja a castíssima mãe de Deus, que raio, uma pessoa pode vestir cores bonitas! Como alertar para os perigos do comunismo, se as aparições são em Maio e a revolução só seria em Outubro do mesmo ano? Como saber que premonições afectariam um Papa, e qual deles? E já agora, em que ano futuro a saber? Cheira a Luis de Matos, em baratinho.
Mas nós precisamos disso. Mais importante que a Fé é a necessidade de precisar de Fé.
Sempre que passo a Fátima, no meio daquelas lojas de vendilhões do Templo, com o negócio da cera eternamente reciclada, com os bracinhos e as perninhas e as Nossas Senhorinhas fluorescentes, sinto no ar, de certo modo, um kitsch lamentável. Ex-libris de um povo inculto e culturalmente pouco interessado no debate teosófico. É isso. Acredita. E chega.
E como o negócio alastrou e é hoje mundial, caramba! Enchamos então os olhos de lágrimas ateias ao vermos tanto acreditar. Como eu gostava de estar convosco, almas simples e não perguntativas! Como eu gostaria de rezar ave marias descalço e acreditar que isso me resolvia todos os problemas! Como é lindo ver uns milhares com velas, sem pensar no negócio. Como é lindo ver o acenar no adeus. Parabéns aos encenadores que ao longo dos anos têm melhorado o evento. Que lindas são as capas negras da Opus Dei. Que dignidade e que perfis! Que sinceras e belas são as lágrimas, na pele enrugada de velhices acreditantes e puras.
Juro que não brinco. A sério. Que pena tenho!
Como me comove o vosso tão simples e elementar acto maior de acreditar! Ficará por ali alguma coisa? Sempre que passo a Fátima abro a janela do carro e aspiro profundamente. Abro as mãos tentando alcançar alguma tonelada de quilo-fé no agarrar do ar. Em vão.
O acreditar é uma força incontrolável e telúrica. Reservada a gente que não quer saber da história de duas famílias ricas de Torres Novas e Ourém, e dos seus secretos e perversos interesses fundiários plenamente satisfeitos.
Calculem. Naquela noite construíram, sem saber como, uma cidade. E uma fé para o Mundo.
E eu eternamente condenado às portas da perdição, por conhecer a história e ter nascido ali ao pé da porta.
Senhor perdoai-me, porque eu sei como se faz!
E se possível, bafeja-me com a tua proverbial tolerância. Preciso muito, podes crer. Sê generoso. Sou assim mas não faço por mal, acredita.
Cumprimentos cá da terra, humildemente,
Pedro Barroso
Etiquetas: PB
2 Comments:
Coitado.......
LB, quem é o coitado?
Enviar um comentário
<< Home