18.5.08

Tomar Juno pela nuvem

Por Nuno Brederode Santos
QUANDO A SEMANA FEZ a sua entrada em cena, podia sentir-se essa brisa fugidia e leve que a esperança cívica sempre traz consigo. Eu senti-lhe o perfume, no meu vasto latifúndio urbano: vinha da hera molhada, por detrás das duas promissoras buganvílias, e volteava em meu redor sem peso nem insistência. Uma visita educada, portanto.
Ela acorre sempre que o cidadão se livra de um constrangimento intolerável. E era o caso. Jardim tinha acabado de dizer o que só ele ainda não tinha dito: que não tinha apoios no Continente para poder avançar. Chamou então realismo ao medo com que o sentido da sobrevivência prende os políticos à sensatez. E, depois de colocados os mais dos seus no apoio a Passos Coelho, declarou guerra a Ferreira Leite e ofereceu, crítica e condicionalmente, uma taça de veneno "pessoal" a Santana Lopes. Lá para Março que vem - um calendário que era o seu e que a demissão de Menezes subverteu -, Passos Coelho e Santana estarão em dívida para com ele. Se então julgar que a conjuntura lho permite, avançará contra Ferreira Leite. Tudo isto é ingénuo, vago e aleatório: o nó cego que ainda agora Santana e outros lhe deram são disso a melhor advertência. Mas a recusa de submissão aos ciclos da vida, da política como da biológica, é sempre vista como virtuosa (e não me vai a capricho discutir agora essa matéria).
O certo é que, definidas as candidaturas, podíamos deixar Santana improvisar programas de Governo, Passos Coelho arriscar o neoliberalismo em concessões às mais confusas tradições doutrinais do partido e Ferreira Leite tornar-se agora social (numa perigosa consonância com Cavaco, que, esperemos, não redunde já em vice-versa) - e sentarmo-nos a assistir. Para o efeito, comprei até um frasco de tremoços. Directas obligent e o PSD não canta sozinho esse fado. Apenas canta pior.
Podíamos, mas não pudemos. Porque, a caminho da Venezuela, Sócrates, acompanhado de autoridades, empresários e jornalistas, resolveu fumar um cigarrinho. Esqueceu não só a lei, recente e polémica, mas também a sanha justicialista com que pretenderam aplicá-la. Mas esqueceu, sobretudo, que, a partir da perda do estado dito de graça, estas comitivas deixam de ser um grupo de pacholas cúmplices, como hordas de escuteiros, unidos no propósito de fazer tudo o que, em casa, os pais não deixam. Por isso, logo uma intifada justiceira saltou para os escaparates, substituindo-se a toda e qualquer relevância da viagem. Surpreendentemente - num homem com três anos de primeiro-ministro, mais não sei quantos de Governo e muitos mais de vida política -, ele tentou varrer a testada com um pedido público de desculpas e o anúncio de que vai deixar de fumar. É destas imprudências que vivem os paparazzi: tornem-lhes pública uma intimidade, mesmo que virtuosa, e eles não mais deixarão de espiolhar todas as outras. No dia seguinte, o próprio jornalista que conduzira esta laboriosa investigação sentia fugir-lhe o Prémio Pulitzer e queixava-se de pouco ou nada se ter dito sobre "os sem dúvida importantes acordos económicos feitos" na viagem. Queixava-se a nós, leitores, que dos factos pouco ou nada soubemos. Nem sequer distinguir entre o que ali se consumou de concreto e aquilo que possa não ter ainda passado de uma mera proclamação bilateral de intenções.
Mas o grave é que, com tudo isto, escapou-nos a todos a votação parlamentar do estatuto autonómico dos Açores, atirado já, irreversivelmente, para apreciação em comissão com vinte e tal alterações. Aparentemente pacíficas, quando várias matérias dele o não deviam ser. Entre elas, a da prevalência da lei regional sobre a lei nacional ("nos limites constitucionais", já sei - mas o respeito pelas regras básicas da Constituição e pelas competências reservadas que ela consagra não resolve o problema). Nem a Baviera de Strauss dispôs de tanto. O que se acordou e o que ainda está pendente nenhum de nós o sabe ao certo. Quem acompanhou os trabalhos levados a plenário, também não. Mas sabemos o pior. Sabemos da tradição de forçar, por lei ordinária, as margens da Constituição. Sabemos que os ganhos de causa dos Açores nesta matéria serão o ponto de partida para novas reivindicações, agora da Madeira. Sabemos ainda que este laxismo sempre proporcionou o argumento para as revisões constitucionais: "Já estava praticamente assim, pouco mudou." Sabemos também que não pode haver equilíbrio num sistema que se vai talhando a improvisos pontuais. O sentido de Estado, de que tantos se ufanam, parece nunca estar presente quando finalmente é preciso.
«DN» de 18 Mai 08

Etiquetas:

1 Comments:

Blogger Jorge Oliveira said...

O Sócrates, coitado, é uma vítima da perseguição dos jornalistas.
Olha se a comunicação social não estivesse dominada pelos socialistas e comunistas...
De vez em quando há um jornalista que faz chichi fora do bacio, não é? Que maçada. O controlo ainda não é total.

18 de maio de 2008 às 14:24  

Enviar um comentário

<< Home