A Europa não é o que era
Por António Barreto
PARECE QUE FOI FRASE FEITA inventada no século XIX: “Calma no Brasil, que Angola é nossa!”. Verdade ou mentira, o certo é que sobrou para nós, pelo século XX adentro. Já nem se conhecia a sua verdadeira implicação, mas pronunciava-se a propósito de tudo e nada. Até que foi substituída por outra: “Deixa lá Angola, que a Europa está connosco!”. As ideias são parecidas, mas só em parte. Na verdade, perante a primeira perda, a conclusão era a de um novo esforço dos portugueses, mas noutras paragens. Enquanto, diante da segunda, os portugueses se colocavam numa posição de beneficiários de ajuda e assistência.
.. Durante uns anos, a Europa esteve connosco. Ou antes, alguns países da Europa, designadamente a Alemanha, que nos salvaram das consequências das nossas tropelias. Até chegar a vez da Europa toda, quer dizer, da Comunidade Europeia. Mais uns anos de fartura, as ajudas vieram. Quase tudo o que vinha da Europa era bom. Dinheiros, mercados, importância, reputação e investimento. E um lugar onde os portugueses se sentiam iguais aos outros, o que parecia afastar velhos traumas e indeléveis complexos.
.. Nos piores momentos destas últimas décadas, e já houve vários, foi frequente pensar-se que, se não houvesse CEE ou UE, se Portugal não pertencesse ao clube, já teríamos conhecido destinos fatais: a absoluta pobreza, uma profunda recessão, desvalorizações consecutivas, golpes de Estado e novos episódios autoritários. Durante anos, a Europa salvou-nos dos nossos demónios, da irresponsabilidade crónica e da demagogia avassaladora que caracterizou quase todos os governos. Pior ainda, protegeu a nossa preguiça e a nossa incapacidade de organizar e prever. A Europa foi manta quente e abrigo, casa acolhedora para os momentos críticos de transição e adaptação.
HOJE, A SITUAÇÃO é diferente. Tudo o que corre mal vem da Europa. Da Europa e da globalização. Ou porque as coisas são mesmo assim. Ou porque a covardia dos políticos portugueses é moeda corrente. A agricultura foi quase destruída, por causa da PAC. A frota de pesca abatida, os pescadores reciclados e o pescado apanhado por espanhóis e outros, por causa da Europa. A ASAE bate a torto e a direito, por causa da Europa. Os bancos têm lucros obscenos e os gestores têm vencimentos próprios de outras galáxias, porque as regras europeias são assim e porque o mercado está aberto. Mal suportamos a concorrência dos países de Leste, da China e demais asiáticos, por causa da Europa. O Estado não pode intervir, não tem meios legais e não recorre aos mecanismos habituais de subsídio e protecção, por causa da Europa. Mas o Estado concentrou poderes e decisões, talvez como nunca no passado, graças à Europa. Da Europa, não temos os salários, os preços dos bens de consumo, os horários de trabalho, os subsídios de desemprego, o salário mínimo, as pensões, as reformas e a prontidão dos serviços de saúde. Mas temos o imperativo de eliminar o défice e de apertar o cinto, assim como a obrigatoriedade de abrir os concursos a empresas internacionais. Espanhóis, italianos e franceses sabem proteger as suas economias e dispõem de sofisticados instrumentos de protecção ou promoção, enquanto os portugueses obedecem aos ditames europeus e não descortinam maneira de invocar o interesse nacional. A Europa já foi modelo e ambição. Hoje, para muitos portugueses, é ameaça. Excepto para os que recorrem à emigração, que, para surpresa de muitos, recomeçou como nos anos sessenta.
POR UMA VEZ, em muito tempo, os portugueses não têm para onde olhar. Brasil, África e Europa pertencem ao passado. Com a particularidade de a Europa e o mundo terem deixado de ser fronteiras e horizontes a explorar e se terem transformado em ameaças e fontes de crise. Por uma vez, em muito tempo, os portugueses têm de contar consigo, só podem mesmo contar consigo próprios. O que, numa sociedade livre e num mundo aberto, é muito mais difícil. Habituados e contar com expedientes e bodes expiatórios e mal educados pela demagogia política, os portugueses comprazem-se em aspirar a muito mais do que podem e têm direito. Consomem mais do que lhes é permitido pelos seus rendimentos. Querem mais do que lhes autoriza a sua produtividade. Devem muito mais do que ganham num ano. Adoptaram os tiques da cultura do êxito, dos vencedores, da gente bonita e da exibição de capa cor-de-rosa. E parece não se importarem com as enormes desigualdades sociais que fazem desta sociedade um pesadelo moral e estético.
A CRISE ECONÓMICA e social está instalada em Portugal. E bem instalada. Não há sinais de qualquer alívio a curto prazo. Ninguém espera uma melhoria efectiva antes de dois ou três anos. Algumas das causas desta situação vieram de fora. A começar pelos custos dos petróleos e da energia em geral, contra cujos aumentos nem sequer a Europa souber tomar providências a tempo. Mas Portugal já estava mal, muito mal, antes deste terceiro choque do petróleo. Há praticamente oito anos que Portugal vem perdendo, em termos absolutos e relativos. A verdade é que a “nossa” crise é em geral muito superior à dos parceiros europeus. Quer isto dizer que somos os principais culpados. Desperdiçámos anos, recursos e oportunidades. Perdemos com a ditadura e a guerra. Perdemos com a revolução e a contra-revolução. Perdemos também com três décadas de facilidade e demagogia. Assim chegámos ao ponto de perceber que ninguém virá em nosso socorro, que não há mais soluções fáceis e que, de fora, não virá mão redentora. Só de nós próprios virá qualquer remédio. E isto não significa orgulho, nem raça. Muito menos talento ou história. Significa tão simplesmente estudo, persistência e organização. E, sobretudo, trabalho.
«Retrato da Semana» - «Público» de 1 de Junho de 2008
Etiquetas: AMB
6 Comments:
Costumo concordar com os comentários do António Barreto, enalteço até muitas vezes a maneira inteligente como expõe as suas ideias. Desta vez, sobre o estado da nação, a crítica não me parece acertada. É óbvio que o país não descolou do subdesenvolvimento crónico, pese os milhões do fundos comunitários, nem conseguiu um lugar na actual ordem económica mundial. Não cabemos, ou não queremos estar, junto do pobres, mas também não temos modelo produtivo para competir junto dos ricos. Com as grandes obras, pagas pelos contribuintes europeus, o estado vai injectando riqueza na sociedade civil, quando a fonte secar, vamos ficar pior, temos de manter o império de inutilidades que se foram construído. Recorde-se a última do governo pelo seu primeiro ministro a classificar a auto-estrada para Bragança, como sendo da justiça. Talvez se a demagogia não fosse tão bem aceite, mais acertado seria chamar-se à estrada da justiça a estrada do desperdício.
Contrariamente à ideia do António Barreto, não penso estarmos numa encruzilhada, sem destino para onde possamos ir sugar mais riqueza. Podemos é estar próximos de ter de trabalhar, cuidarmos de nos governar como o que temos. Entendo até que os dinheiros da Europa só nos estão a criar problemas, a adiar a realidade que é o nosso país.
Desta feita, também não concordo com o sentido da crónica de AB.
Quem verdadeiramente vive acima das possibilidades do País é uma nova casta de Dirigentes que assentou raízes nos Bancos, nas Empresas e até no Estado, que decreta para si quanto há-de ganhar, atribuindo-se cumulativamente lugares e funções carregados de regalias típicas de autênticos nababos.
No resto, há, quando muito, uma espécie de mimetismo social, motivado pelo exemplo nefasto destas castas que emergiram da promiscuidade político-económico-financeira pós-revolucionária.
Sem responsabilizar primeiro estes novos sibaritas, será sempre estultícia desatar a verberar o comportamento das massas.
Estas invariavelmente agem por puro efeito mimético, pelo desejo de imitar o que vêem apontado como modelo de sucesso social.
Espanta-me que António Barreto, analista avisado, na sua crítica, não estabeleça esta destrinça fundamental.
Por aqui se comprova, como se fora necessário, que nem sempre as melhores cabeças logram boa inspiração ou adequada clarividência nos seus juízos correntes.
No fundo, no fundo, tudo humano, demasiado humano até...
Esperemos, por isso, que, no próximo domingo, Barreto regresse ao seu melhor, visando quem deve, não desperdiçando fogo com caça de pequeno porte, como, de resto, noutras ocasiões, ele tem feito com particular acerto.
Bom início de semana.
Prezado Leao,
Não costumo responder aos comentários aos meus escritos, a não ser de vez em quando. Não gostaria de parecer que quero "ter a última palavra"... Mas hoje não resisto. Na verdade, depois de ler uma frase sua em que afirma com clareza que está em divergência com o que eu disse, sigo o seu texto, o qual subscrevo praticamente todas as palavras! E lidos os dois em paralelo, sinceramente, parecem vir da mesma fonte!
A. Barreto
"Perdemos com a ditadura e a guerra",
diz Antonio Barreto. Mas, com Salazar, perdemos relativamente a quê, exactamente?
Perdemos por não termos continuado a usufruir de tudo o que havia antes, ou seja o descalabro da I Republica? Ou será que perdemos por não termos podido usufruir mais cedo de tudo o que veio depois, ou seja de tudo o que temos hoje?
«A agricultura foi quase destruída, por causa da PAC. A frota de pesca abatida, os pescadores reciclados e o pescado apanhado por espanhóis e outros, por causa da Europa.»
«O Estado não pode intervir, não tem meios legais e não recorre aos mecanismos habituais de subsídio e protecção, por causa da Europa.»
Parece-me haver aqui alguma contradição.
Prezado Sertorio,
Com Salazar, perdemos a oportunidade de resolver a questão ultramarina a tempo e horas. Com Salazar e a guerra, perdemos recursos, tempo, vidas e energias que poderiam ter sido utilizados de melhor maneira. Com Salazar, perdemos a possibilidade de ter educação mais cedo. Com Salazar, perdemos (ou não tivemos a tempo) a experiência da liberdade e da democracia. Perdemos a possibilidade de fazer uma transição (para a democracia, para a Europa, para uma sociedade aberta) sem revolução, sem traumas e sem perda de energias e recursos.
Enviar um comentário
<< Home