A invasão das beatas
CLARO QUE NÃO ESTOU A FALAR daquelas devotas senhoras que a vida, por razões que só elas sabem, transformou em piedosas devotas, assíduas e empenhadas zeladoras da igreja e da paróquia. Muito menos estou a falar da pequena Jacinta Marto, a pastorinha nascida no lugar de Aljustrel, na freguesia de Fátima, e de todas aquelas virtuosas criaturas, como ela, alvo de beatificação pela Igreja e que, por via dessa bênção, se diz que habitam o Paraíso e têm capacidade de interceder por quem a elas recorra em oração. Estou, sim, a falar das piriscas, ou seja, das vulgaríssimas pontas de cigarro que agora se acumulam nas ruas de Lisboa e por todo o país, às portas de cafés e restaurantes, lojas, escritórios, teatros e cinemas, oficinas, escolas e tudo o que seja sítio debaixo de telha com gente a conviver.
.. Fundamentalisticamente exagerada, a chamada lei do tabaco é a causa desta sementeira de beatas que invadiram os nossos passeios, sejam eles da mais nobre e artística calçada portuguesa – hoje em dia a ser executada por ucranianos, brasileiros, moldavos ou africanos - ou o vulgaríssimo calcetamento, todo ele de calcário branco, quase sempre esburacado e pejado das pedras que dele se soltaram, por tradicional e desmazelada falta de manutenção. É só piriscas entaladas entre as pedrinhas. Até há, precisamente, um ano, os passeios das ruas por onde passo reproduziam o colorido das copas dos jacarandás neles alinhados. Hoje são um mar de beatas amarelo-acastanhadas a sobrepor-se ao mar de frágeis e efémeras pétalas lilases.
.. Nestes concentrados de pontas de cigarro há uma particularidade que me saltou à vista, que qualquer um pode confirmar. Com efeito, os cigarros, de que essas beatas são vestígios, foram fumados até ao filtro e só muito raramente se vê um ou dois milímetros do branco do papel mortalha. Pode deduzir-se, talvez, que os fumadores ou as fumadoras, forçados a vir à rua matar o vício, com ou sem autorização do chefe ou do patrão, gozam aquele prazer até à última gota ou, melhor dizendo, até ao último farrapinho de tabaco. Isto por duas ordens de razões. Uma, porque o preço actual do maço de cigarros não consente desperdícios, outra, para que se aproveite da melhor maneira as poucas interrupções no trabalho que a decência ou a disciplina consentem.
.. Ao pé da minha casa há uma tasquinha muito popular e em conta, com meia dúzia de pequenas mesas, que serve comida de gente do povo, no género arroz de bacalhau com feijão frade, frango guisado com esparguete e outros pratos bem saborosos, a um clientela onde há muitos fumadores. Para evitar o triste espectáculo, à entrada, o dono do estabelecimento tem à porta, no chão, metade de um garrafão de plástico, daqueles que levam cinco litros de água, com areia no fundo, a servir de cinzeiro.
Lisboa, 29 de Maio de 2008 - texto inédito, especialmente escrito para o 'Sorumbático'; as crónicas que o autor aqui afixa estão também disponíveis no seu blogue-arquivo Sopa de Pedras.
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2 Comments:
Sim, há tasquinas e cafés a colocarem no exterior um recipiente, normalmente, um vaso de cerâmica com areia. Onde não exite, é ver o passeio ou o espaço entre a beira deste e os automóveis pejados de beatas.
Ouvi hoje na rádio que começa a haver processos disciplinares, com intenção de despedimento, pelo abaixamento da produtividade dos trabalhadores que se deslocam ao exterior para fumar.
Isto está a começar a ficar complicado.
Um texto reflexivo em tempo útil.
Muitas vezes, o fumar é acto de libertar stress que se vai acumulando ao longo do dia no ambiente de trabalho.
Não fumo...mas denoto que muitos colegas o fazem com esse sentido...pois a vida não está fácil, não senhor!
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