Mais olhos do que barriga
Por Nuno Brederode Santos
CELEBRE-SE O PARTO DEMOCRÁTICO, respeitando as dores que com ele vêm. O PSD vai a votos e eu, entre amigos e basbaques, estarei a vê-lo em directo. Coisa sã e doentia ao mesmo tempo. Sã, no que tem de amor à cidade e de atenção pelo que nela se vive. Mas doentia, na impaciência que revela, já que bem podia esperar, tranquilo e desprendido, pelas notícias do domingo de manhã. É, pois, um vício, mas gosto dele. Invejei isto até quase aos trinta anos. Deixem-me agora tirar a barriga de misérias.
.. Claro que não me é nada indiferente o desfecho de hoje. Como o não deve ser, nem ao Governo, nem aos demais partidos. Mas sobretudo ao CDS/PP, que historicamente encolhe e estica a manta ideológica com que nos assombra, a ver se esconjura a sua fundamental entaladela: a de uma vida artificialmente assistida, no exíguo limiar do que o PSD lhe consente. Desautorizado o "centrismo" de Freitas do Amaral, desprezada a afirmação de brio direitista e neoliberal de Lucas Pires, dinamitada a aventura cristã de Ribeiro e Castro (a meu ver, a que mais razão de ser lhe conferia), o PP retomou a sua errática indefinição. Pior, recusa a sua genealogia e esconde essas lideranças históricas como Estaline quis apagar Trotsky. Pior ainda, fá-lo com as mesmas caras com que partilhou a derrocada eleitoral de Santana Lopes. Claro que fez tudo isto, no terror de alienar a formação das listas para 2009 (exactamente como agora o PSD). Mas fê-lo cedo demais, sem sequer cumprir o simulacro de nojo que a demissão de Paulo Portas tinha anunciado. E desde então, todas as tentativas para redourar a sua imagem pública têm esbarrado na mais desconsoladora evidência: a faena das tendências internas sucumbiu com o falhanço da ala liberal de Pires de Lima; a imagem extraparlamentar esgota-se no one man show de Paulo Portas, que cavalga sem critério perceptível qualquer descontentamento social; e, enfim, as caras, as do mesmíssimo grupo de amigos - sempre exibidos no Parlamento e nos media - que acreditou aprisionar na algibeira uma pulsão, social e política, que talvez pudesse ter sido verdadeira.
.. Mas não há pertinácia sem razões. E a que agora conta é que o actual PP tem por dogma esta crendice: o pior inimigo do PP é o PSD tal como ele é e o melhor amigo do PP é o PSD tal como ele está. Um erro crasso. Porque o PSD, mesmo como está, não deixa - nunca deixou - espaço ao PP para uma afirmação autónoma. Um PP tornado, também à pressa, pró-europeu e que se afirma atlantista, conservador, neoliberal e democrata-cristão, joga na confusão ideológica que precisamente o PSD representa e que as directas alegam querer clarificar. E que, se neste foi testada e é a mãe de todas as crises, é nele que será achada a solução - se a houver. E não no vizinho pobre. Talvez seja uma irónica questão de precedência cronológica, mas é assim, porque a História não se faz nem escreve às arrecuas.
.. Vem isto ao caso, quando o PP acena com a sua moção de censura. Não se exige entre nós a moção de censura construtiva, contrapondo uma alternativa global de governação e, por vezes até, uma equipa que a credibilize. Mas isso só tem alcance jurídico-formal. Porque só quem não tem anseios de poder pode dedicar-se a isso, em nome do reforço da rua ou do mero desgaste da imagem do Governo. Não se lhe pede mais contas, já que a matemática de uma maioria absoluta é inexorável. Mas quem se autoproclama integrado num nebuloso "arco da governação" e não tem essa possibilidade matemática de fazer vingar a censura tem, pelo menos, de convencer da sua capacidade para substituir o actual poder. O que, enquanto houver PSD, o PP não terá.
.. Sei bem que nada disto é lição para Paulo Portas. É por ele bem o saber que, perante uma desmedida atenção em torno de um PSD a querer sair da sua crise, o PP vem proclamar a alternativa que não é. Vem dizer a uma sociologia em grande parte comum que não há crise, porque quem melhor a representa é a pequena bancada que propõe a moção de censura. Uma censura que é afinal dirigida contra o PSD, mesmo se toma o Governo do PS por pretexto. Talvez consiga alguma atenção mediática, mas não altera o essencial: na próxima semana, já haverá mais portugueses a conhecer o dentífrico que usa o(a) Presidente do PSD do que as políticas sectoriais que o PP irá - finalmente - explicar-nos.
«DN» de 1 de Junho de 2008
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