9.7.08

A Baixa sem música

Por Alice Vieira
HÁ MUITO TEMPO que a Baixa não me parecia tão bonita.
Passava pouco das nove da manhã, e confesso que já nem me lembrava de quando tinha sido a última vez em que tinha subido a Rua Garrett a essa hora.
Mas ontem eu tinha tempo e aproveitei para andar pelas ruas - e descobri lojas lindíssimas, velhas mercearias recicladas, um café austríaco, galerias de arte, montras com produtos originais, diferentes da produção em série que os grandes espaços apresentam - e até uma nova estátua do Pessoa, mesmo em frente da casa onde nasceu!
Não sei se a estátua será para ficar ou se se trata de uma daquelas instalações que andam de um lado o para o outro — e, para dizer a verdade, não me tocou muito. Se calhar é de escultor famoso, não duvido, mas confesso que preferia ver o poeta de cara descoberta, a vê-lo de cara completamente tapada por um livro.
Muito honestamente, prefiro o piscar-de-olhos-ao-turista do poeta de bronze na esplanada da Brasileira, com aquela cadeira vaga, esperando eternamente por Ofélia que, evidentemente, nunca há-de aparecer, nem nunca ali há-de comer chocolates, demasiado carregados de metafísica e calorias.
Mas havia qualquer coisa naquela manhã que me fazia gostar especialmente da cidade.
Eu tentava entender o quê, mas não conseguia. Era qualquer coisa que tornava a manhã muito doce, muito nossa, muito princípio do mundo.
Só muito depois consegui descobrir o que tornava tudo tão especial: era o silêncio!
Àquela hora, no Chiado, ainda não havia música!
Há quanto tempo eu não começava o dia num lugar sem música!
Ele é o ginásio, com música à porta, música enquanto andamos na passadeira, música quando passamos para as máquinas, música na piscina, música nos balneários; ele é o supermercado, com música da porta da entrada à porta de saída; ele é o metro, ainda com mais música. E os elevadores, e as lojas, e os cafés. Música por todo o lado.
Por isso a Rua Garrett me pareceu tão diferente, e a cidade tão bonita.
Claro que voltei a correr para casa: aproximava-se a hora fatídica do crime, ou seja, a hora em que chegam os “animadores”, os altifalantes das lojas de discos — e lá se ia a magia.
Mas, por algumas horas matinais, a Baixa foi um oásis de paz. Como se o tempo tivesse parado.
Era até quase capaz de jurar que, da porta do “Au Bonheur des Dames”, a Tatão ainda esperava pelo Ribeirinho.
«JN» de 6 de Julho de 2008

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eu sou um apaixonado pela música. Mas, por vezes, a melhor música que ouço é o silêncio!

9 de julho de 2008 às 14:59  
Blogger T said...

Lisboa de manhã cedo nada tem a ver com a Lisboa esbaforida, ruidosa e reluzente do resto do dia.
A sua crónica é deliciosa. Parabéns!

9 de julho de 2008 às 22:06  
Blogger Helena Rezende said...

Excelente crônica. Realmente, tem hora que a música mais bela é a do silêncio...é algo divino poder ouvir o som do vento, dos pássaros, o ladrar dos cães preguiçosos, etc.
Um abraço, Helena Rezende
http://vamossalvarnossoplaneta.blogspot.com

10 de julho de 2008 às 01:10  

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