Agosto em Lisboa
“O MELHOR MÊS para viver em Lisboa é Agosto”, diz a mulher, piscando os olhos diante do reflexo do sol na água do pequeno lago da esplanada. Lago artificial, numa esplanada criada no centro de Lisboa, ou num dos vários centros que Lisboa agora vai tendo, à medida que os shoppings lhe vão dando outro rosto.
Quem passa da rua nem dá por ela, o arquitecto foi engenhoso, colocou-a numa espécie de pátio interior do prédio, “até parece que estamos muito longe de Lisboa, nem se ouvem os carros nem nada.”
A amiga concorda e, no íntimo, agradece ao desconhecido arquitecto que assim lhe proporciona uma ilusão de férias, uma ilusão de esplanada à beira-mar, com a vantagem de ter o “Corte Inglés” a dois passos.
“Já reparaste que nesta zona todos os euros são espanhóis?”, diz, “todos os trocos que nos dão nas lojas trazem nas moedas o Juan Carlos a rir para a gente...”
Na mesa ao lado, uma estrangeira estoira ao sol, um chapéu de linho branco amarrotado enfiado pela cabeça, pulseiras a treparem-lhe por ambos os braços.
O empregado que lhes serve o café já a conhece, “ vem aqui todos os dias e tem cá uma saída que nem calculam... Mas não quer nada com estrangeiros. O portuguesinho valente é o único que lhe serve...”
O homem ri e acrescenta:
”Diz que é para aprender a língua!... Se fosse para aprender a língua, também eu servia, não era? Posso não ter grandes estudos, mas para lhe ensinar bom dia, boa tarde, com licença, obrigada, se faz favor e desculpe, ainda chegava!”
Elas sorriem com a história, até nisso a esplanada lisboeta se parece com qualquer esplanada de praia em Agosto, cheias de estrangeiras loiras e disponíveis.
“Esta gente não tem horas para nada”, diz uma delas, “almoçam quando calha, se calhar nem jantam, haviam de ter um marido como o meu”.
Trinca raivosamente o mil-folhas grande demais para a sua boca, o creme a espalhar-se todo, a cair na blusa, “chatice, lá vou ter de a lavar, ainda ontem fiz uma máquina de roupa, já hoje tenho de fazer outra, muita roupa se suja lá em casa!”
A outra concorda, lá em casa é a mesma coisa, e depois dizem que estão de férias, ela já nem se lembra de quando é que teve férias, férias mesmo a sério, e já não é mau haver esta esplanada mesmo à porta de casa.
Calam-se por momentos, e olham uma vez mais para a rapariga loira, que não tem de certeza problemas desses, nem marido em casa a refilar se o jantar não vem a horas para a mesa, ou se o fio do feijão verde não está bem tirado, ou se a sopa ficou esturrada e a cerveja morna.
Pagam a despesa, lá recebem mais uns euros com a cara do rei espanhol, sorriem ao empregado, regressam ao barulho da cidade.
Ao final do dia, a rapariga loira regressa à esplanada, com o sorriso beatífico de quem passou uma tarde inesquecível, mergulhada nas subtilezas do conjuntivo, na descoberta do nome predicativo do complemento directo, ou na maravilha das frases idiomáticas.
Quando voltar à sua terra estará perfeitamente capaz de explicar às amigas, com apetências linguísticas iguais às dela, se a língua portuguesa é, ou não, muito traiçoeira.
«Tempo Livre» de Agosto de 2007
Passatempo-relâmpago (CMR): será premiado, com um exemplar do livro cuja capa aqui se vê, o primeiro leitor que souber dizer o nome da respectiva editora. Actualização (17h35m): ver [aqui] o resultado do passatempo.
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