5.8.08

Os livros certos

Por Alice Vieira
ERA UM FIM DE TARDE de conversa mole, numa esplanada minúscula, (destas que agora se descobrem a cada esquina da cidade para combater a proibição de fumar no interior dos cafés…) e ao meu lado uma criança morria de aborrecimento, torcia-se na cadeira, tentava sair mas a voz da mãe lembrava-lhe que na rua passavam carros e era um perigo, e a mãe ia embalada na conversa com uma amiga e nem dava por ela, e de repente a minha filha murmurou ”nunca me lembro de ter saído de casa sem um livro, e somos tão felizes aos 9 anos quando lemos os livros certos… Será que as crianças hoje ainda lêem os livros certos?”
E começou numa série de intermináveis “e tu lembras-te?...”, todos relacionados com cenas de livros que há muitos anos tínhamos lido em conjunto (“lembras-te daquelas férias na Barra, em que tu nos leste o “Coração” inteiro? Tu a leres e a gente a chorar, a chorar…”), diálogos inteiros que sabíamos de cor, ou apenas frases, ou apenas palavras, ou aqueles nomes tão típicos de certas épocas, os “Leôncios” da Condessa de Ségur (“foi com ela que percebi pela primeira vez o que era a luta de classes”, disse ela entre gargalhadas, “os criados tão separados dos patrões, os pobrezinhos tão sacrificados e tão bonzinhos…Só podia dar no que deu…!”)
Mas hoje as crianças não lêem livros. Ou não lêem “os livros certos”, aquilo a que vulgarmente chamaríamos “os clássicos”…
E a falta que isso lhes faz…
A falta que lhes faz a leitura daquelas histórias sem negras magias, sem guerras do princípio ao fim, sem tenebrosos inimigos atacando a Humanidade (está bem, os bons acabam por vencer mas às vezes a fronteira entre o Mal e o Bem é tão ténue, e até que isso aconteça, meu Deus, quanta sangueira derramada, quantos pesadelos, quantos mortos, quanta gritaria…), aquelas histórias que lhes dão vontade de crescer e de acreditar nas pessoas (têm muito tempo depois para perceber o que se passa…)
Aquelas histórias que as tornam crianças felizes.
Hoje há uma única preocupação em relação às crianças: passar-lhes para as mãos um computador o mais cedo possível.
Agora, quando um pai vai ver o seu rebento acabado de nascer, juntamente com a proposta de sócio do Benfica, deixa-lhe no berço um computador topo de gama.
E habituadas desde sempre aos meios frios, como poderão elas ter, um dia, o coração aquecido?
«JN» de 3 de Agosto de 2008
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Passatempo com prémio: o autor do melhor comentário que venha a ser feito a esta crónica até às 20h do próximo sábado, dia 9, será premiado com um exemplar de uma obra clássica da literatura infantil.
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Actualização (11 Ago 08 ): o passatempo foi ganho por Cristina Nobre Soares, a quem o prémio já foi enviado.

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6 Comments:

Blogger diogo said...

Enquanto as crianças computam não chateiam . Os papás vêm o benfica , para mais tarde poderem conversar com os colegas e os crianços brincam com o portátil , que para ser políticamente correcto , deverá ser o novel Magalhães. E assim vai a cultura em Portugal . Terá isto alguma coisa a vêr com o Portugal dos pequeninos ?

5 de agosto de 2008 às 20:25  
Blogger R. da Cunha said...

Com os meus 11/12 anos, li o "Coração", do Edmundo d'Amicci, que me comoveu.
Muito mais tarde, passou na TV uma série, baseada no livro (terá também passado em "bonecos - japoneses?), de que me recordo ter visto alguns capítulos, e interroguei-me (ainda me interrogo), se a adaptação era fiel, pois não gostei de tal série, que não acabei de ver. Ou seria da diferença das idades em que li e vi?
Será que a Alice Vieira me tirará a dúvida?

5 de agosto de 2008 às 22:49  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Inicialmente, a ideia era que o vencedor pudesse vir a escolher entre os 3 clássicos «Volta ao Mundo em 80 Dias», «Tarzan, o Terrível» e «Alice no País das Maravilhas».

No entanto, Alice Vieira juntou mais dois, que oferece: «Mulherzinhas» e «Mary Poppins».

5 de agosto de 2008 às 23:24  
Blogger Alice Vieira said...

Em relação ao 2º comentário, houve uma série de 6 episódios, de um realizador italiano, que era muito bem feita e muito fiel ao livro. Gravei-a então em cassettes (era o que havia...) mas perdi-lhe o rasto. Não sei de mais nada, e acho que nunca foi "passada" a desenhos animados

6 de agosto de 2008 às 10:45  
Blogger CNS said...

Li o “Coração” e uma série de titulos daquela colecção mágica de capa azul clara. E chorei com os “Dois corações generosos”, as aventuras daquelas quatro meninas ditas exemplares e viajei à velocidade que a imaginação tem naquela idade, dentro dos livros de Frances Burnet. Se os ditos livros certos são aqueles que cedo nos fazem viajar de tempos despojado no chão de um quarto, que nos fazem sonhar até os olhos arderem com a falta de luz do fim de tarde, então sim, acho que li os livros certos quando tinha nove anos. E ainda me lembro do cheiro da prateleira, onde eles, alinhadinhos e azuis, esperavam por alguma elasticidade financeira da minha mãe. Sim, penso que li os livros certos aos nove anos.

Cristina Nobre Soares

6 de agosto de 2008 às 11:23  
Blogger Melo said...

O que lia aos nove anos? Lia 'A Rua Sésamo'. Ainda obrigava a minha mae a comprar todas as colecções que saíam, mesmo já não tendo paciência para algumas das histórias em que ensinavam a contar até 10 (os livros são recomendados até aos 7 anos!!!).
O universo daquelas personagens fascinava-me, sobretudo o facto de o Egas e o Becas poderem viver sozinhos com 8 anos :)
Lis também "Uma aventura", ainda hoje volto a ler algumas histórias, e apesar de já nao ser da minha geração ainda li alguns dos livros da Condessa de Ségur dos meus tios
Da minha paixão pelos livros lembro-me sbretudo de ir à terça, depois da aula de música, buscar livros À biblioteca para os entregar na quinta, novamente após a aula de múscia, e levantar outros... Ainda há pouco tempo tinha em casa algum perdido que me esqueci de entregar...

9 de agosto de 2008 às 19:26  

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