24.10.08

A Quadratura do Circo - A múmia

Por Pedro Barroso
A MÚMIA MORA NUM SARCÓFAGO e lembra vagamente o tempo em que a pessoa estava viva.
Dela as pessoas têm também a distante ideia de uma cara de ferro, autoritária e dura, coisa para esquecer.
Embalsamada, é sabido, uma múmia, embora silenciosa, tem a utilidade que tem. Mas pode durar imenso tempo. Iludindo-nos com a sua presença silente, a que, por mero respeito pelos mais velhos, concedemos alguma educada condescendência.
Bem maquilhada, uma múmia pode dar a ilusão de estar viva. Pode até dar a ilusão de modernidade.
Nada mais enganador, contudo, que uma múmia pretendendo ser favorita. Uma múmia não convence ninguém. Favorita? Nem na cama do faraó, nem no coração do povo.
A múmia está paralítica no tempo e nas causas. Representa o tempo passado e as causas perdidas. Vive à base de anfetanol duricida, coisa para calosidades resistentes. Se o nome não for assim, paciência. Perceberam a ideia.
Outra coisa importante:
A própria múmia sabe que já não está viva. Faz menção, através de um desenho dourado na tampa do sarcófago, de recordar alguns traços de quando ainda valia alguma coisa e tinha vida, e poder, e decisão.
Mas hoje não. Está, obviamente deitada no chão, na cripta de alguns devotos, oculta debaixo de um manto imenso de pó e eternidade, envolta em faixas de bálsamos e cheiros. Mesmo reeditada e repintada de dourados, a múmia não é mais que isso. Uma antiguidade; digna do British Museum.
Sê-lo-á brevemente, transladada com pompa e circunstância, acompanhada no doloroso passo por todos os que a adoraram em vida e a quiseram reinventar depois de falecida.
Idólatras sem futuro, obnubilados pela manhã de nevoeiro, ainda persistem em prolongar o estertor e todos os dias a põem de pé, para terem a ilusão de que ainda seja um ser animado, para causar agitação.
É sabido e de nossa experiência, que uma múmia pode governar um país. E, apesar de, aparentemente, ainda falar, esta múmia creio que tenha apenas uma vaga memória do que já foi; ou talvez ventríloquo incorporado, pois nada parece funcionar nem com paixão, nem com energia, nem com verdade.
Algo não bate certo; nem o silêncio nem a fala. Nem o passado, nem o futuro.
E uma múmia, mesmo já conhecida - uma, duas, trinta vezes vista – torna-se uma desilusão de vida, uma morte anunciada. Não dá.
Isto só lá vai com alma.
E as múmias, é sabido, têm os mecanismos da alma avariados.

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1 Comments:

Blogger Táxi Pluvioso said...

Quem é essa múmia? Só se conhece o animado filme com Brendan Fraser.

24 de outubro de 2008 às 13:59  

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