12.7.11

A Memória

Por Maria Filomena Mónica

NUMA SEMANA em que tanto pensei na morte, não é de admirar que tenha concentrado a minha atenção na memória. O seu desaparecimento, ligado à doença de Alzheimer – que irá afectar cada vez mais pessoas – horroriza-me. A minha nunca foi boa, mas, ao longo dos últimos anos, a situação piorou, como o demonstram os oito pares de óculos espalhados pela casa, os três post-its afixados no meu computador e os papeluchos, suspensos por quadradinhos magnéticos, que ornamentam a porta do frigorífico. Às vezes, não é tanto o esquecimento de coisas importantes que me faz impressão, mas ser incapaz de memorizar nomes, números e datas. Lembro-me perfeitamente da matrícula do Peugeot que o meu pai conduzia nos anos 1950, mas não sei qual é a do meu Corsa, comprado há dois anos. Se o meu cérebro assim reage aos 68 anos, como estará daqui a dez ou, na hipótese de estar viva, daqui a vinte?

Como tantas vezes me sucede quando estou diante de um problema, resolvi estudá-lo. Mandei vir a obra de um cientista premiado com o Nobel, Eric R. Kandel, In Search of Memory: The Emergence of a New Science of Mind, onde, recorrendo a uma mistura de disciplinas tão diversas quanto a Psicologia Cognitiva, a Neurociência e a Biologia Molecular, se explica, de forma clara e acessível, a forma como o cérebro cria a memória. Para meu espanto, no final, apenas retive a descrição da sua infância, passada numa cidade, Viena, ocupada pelos Nazis.

Para o que der e vier, já chamei a atenção do meu marido, dos meus filhos e dos meus amigos para o facto de o meu cérebro estar aparentemente cheio de SPAM`s. Lamento não possuir, como nos computadores, uma tecla com as palavras «del», mas, sem ela, nada há a fazer. Recordo coisas insignificantes passadas na infância, mas não tenho a mais vaga ideia do que fiz há alguns meses. Consolo-me, pensando estar em boa companhia. Eis o que, num dos seus caderninhos, Leonardo da Vinci anotava: «Frequentemente, coisas que aconteceram há muitos anos parecem-nos íntimas e próximas do presente e muitas coisas que aconteceram recentemente parecem-nos tão antigas como os dias há muito perdidos da juventude».

A perda de memória acontece a toda a gente, embora não à mesma velocidade.

Há uns meses, quando proferi a uma «lição» na Reitoria da Universidade de Lisboa, tinha a meu lado um famoso advogado lisboeta, o qual, para meu espanto, citou, de cor, Locke, Voltaire e Adam Smith. Por ser mais velho do que eu, fiquei envergonhada por ter colocado, em cima da mesa, uns apontamentos. Na viagem de regresso, tentei convencer-me de que a capacidade de olvidar não era tão negativa quanto pensava. Tendo em conta a quantidade de desgostos que sofri, de patifarias que pratiquei e de azares que sobre mim se abateram deveria agradecer a Deus a faculdade de esquecer, mas a perspectiva de ficar sem capacidade de reconhecer o que me rodeia enche-me as noites de pesadelos.
«Expresso » de 9 Jul 11

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2 Comments:

Blogger GMaciel said...

Cara Filomena Mónica,

Da sua alma nos chega este comovente texto, e com a minha lhe deixo a mais sincera solidariedade.

O meu abraço forte

12 de julho de 2011 às 11:41  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

De facto, todos queremos chegar a velhos, mas sem os problemas da velhice.

De qualquer forma, a lembrança de acontecimentos remotos e a não-lembrança de outros recentes sucede a todos, mesmo antes da velhice. Mas vejamos, também, o seguinte:

Uma pessoa que já passou os 60 anos de idade tem, no activo, mais de 20 mil dias.
E dos anos recuados, quantas recordações poderá ter?
mil? 10 mil? Se tiver umas 20 mil, isso corresponde a uma média de uma por dia, o que é muito pouco, em relação àquilo que, apesar de tudo, recordamos de tempos recentes.

12 de julho de 2011 às 19:50  

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