7.1.12

Os cheiros da cidade

Por Antunes Ferreira

A AVENIDA da República é, sem margem para dúvidas, uma das artérias mais importantes de Lisboa. Dir-se-á que a da Liberdade lhe é superior, mas isso são outros quinhentos mal réis, pois aqui não se trata de escolher a primeira; o nosso Sorumbático, que acaba de completar os seus sete anos – muitos parabéns! – não é, abrenúncio, figas, canhoto, lagarto, lagarto, lagarto, essa merda ignóbil, ultrajante e obscena que foi a Casa dos Segredos.

Pode recordar-se a avenida da República com as suas vivendas laboriosamente trabalhadas (ainda restam duas ou três, mas em degradação acelerada) dos princípios do séc. XX, ou com os seus prédios de andares, um tudo-nada posteriores, com as varandas recheadas de vasos de sardinheiras, ou esventrada pelas obras do metropolitano.

E o Campo Pequeno do Manuel dos Santos e do Diamantino Vizeu, do Vitorino Fróis e do João Branco Núncio também faz parte dela ainda que esteja ali mesmo ao seu lado, numa vizinhança cúmplice de toiros, toureiros e touradas. E a pastelaria Versalhes. E a Casa Xangai. Mas igualmente os edifícios mais ou menos modernos com as suas fachadas envidraçadas.

Mas, não posso vir aqui apenas para falar da avenida republicana que tinha sido inaugurada em 1904 e que seria crismada depois do 5 de Outubro de 1910. É certo que ela merece, mas não deverá ser motivo de escrito, se nada houver que o justifique. E há. Há e com razão redobrada.

Para quem vem do Campo Grande logo nota uma curiosidade renovada, para não dizer também empolgante. Junto aos falecidos barcos do deserto lago há um cartaz que, pelo menos há três anos, anuncia e promete que naquele local vai surgir um complexo desportivo do melhor que há, com piscina e tudo e o mais que se verá.

É um aviso da Câmara Municipal de Lisboa que reza mais ou menos: em 1912 vai nascer aqui etc. e tal. Só que, desta feita o ano é este em que estamos. Porque no mesmo cartaz já existiu um que dizia exactamente o mesmo, mas para 2011. E, por baixo, um tanto a descoberto por mor da cola que deve ser como a crise, exactamente o mesmíssimo, para 2010. Longevos, portanto, o cartaz e a promessa.

Adiante. Ontem mesmo, quando me dirigia ao Saldanha, parei num semáforo um tanto mais demorado justamente em frente à já citada Casa Xangai. Até aqui tudo normal: semáforo demorado, Casa Xangai à minha direita, Versalhes no mesmo sentido, buracos na calçada bem conservados, quiçá mesmo ampliados, sinaleiros de jornal escanzelados, de aspecto doentio, ressumando charro ou seringa.

Junto a uma árvore, tranquilamente, um senhor de idade aliviava a bexiga e quiçá a consciência. Bem posto, blazer azul escuro com botões dourados, calças de boa bombazina, cinzentas, gravata lisa e chapéu de aba curta. Se alguma coisa ainda me espantasse, era aquela. Como vinha pela rua lateral, encostei ligeiramente, só para ver como a cena terminaria. Continuava o trivial: buzinadelas a esmo. Não liguei, liguei sim as luzes de estacionamento, vá lá.

De imediato um zeloso apontador de espaços vagos, acorreu, ó senhor doutor, não há lugares, eu bem gostava de o ajudar, mas, não há mesmo. Disse-lhe, abrindo a janela, que era um instantinho, seguia logo à minha vida, muito obrigado. E uma moedinha, arranja-se?, bom tome lá, não que tenha feito por ela, mas pronto.

O cavalheiro depois de se ter convenientemente sacudido, fechara a braguilha, ajeitou o chapéu e avançou calmamente para o passeio. E o arrumador, estou cheio de fome, não como desde ontem, uma moedinha… O sol de Inverno estava saboroso, no meio de um céu impecável, sem sombra de nuvens. O meu carro ficou na garagem, não há nada para ninguém. E vendo que eu mirava a cena, virou-se para mim, estes gajos deviam ser impedidos de estar por aqui; além do mau aspecto, cheiram que tresandam. É só porcaria.

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4 Comments:

Blogger Unknown said...

Lá diz o ditado:
Só fala quem tem que se lhe diga...

Boa partilha.
Cumps.

7 de janeiro de 2012 às 10:09  
Blogger R. da Cunha said...

Mais uma invencionice delirante do Antunes Ferreira. Não liguem; não há nada a fazer.

7 de janeiro de 2012 às 13:08  
Blogger Santos Oliveira said...

O Antunes Ferreira pretendeu saber se o Cavalheiro sacudia a coisa ou não.
Final feliz?

7 de janeiro de 2012 às 13:21  
Blogger Maria said...

AF
A Avenida da Republica que eu recordo, era encantadora, com todos os prédios e vivendas, não iguais mas, ligando bem entre si. Começaram a demolir, a escavacar, até um Prémio Valmor, iam deitando abaixo, as árvores passaram a ser WCs de canitos, secaram caíram. Os cocós dos canitos, agora, enfeitam os passeios esburacados e, por vezes, os sapatos de alguns incautos. Aliás, isso é normal em Lisboa e arredores. A cidade que conheci limpa e cheirando bem, é hoje uma lixeira a céu aberto, suja e malcheirosa.
Já não se pode dizer: "Cheira bem, cheira a Lisboa".
Parabéns ao "Sorumbatico".
Um abraço
Maria

7 de janeiro de 2012 às 17:39  

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