24.10.12

A dívida infame

Por Baptista-Bastos
MARIA do Céu Guerra, a grande actriz Maria do Céu Guerra, uma das duas ou três nossas maiores, esteve, na segunda-feira, no programa da SIC Querida Júlia com mais três convidados.
Depuseram acerca do triste tempo português, onde o infortúnio cauteriza feridas e os desgostos sobrepõem-se aos desgostos. O programa de Júlia Pinheiro, sobre ser de entretenimento, não sustenta, apenas, uma futilidade imbecil. Ali se fala de crime sem castigo, das dores do viver português, e, até, numa rubrica de economia, comentada por uma mulher jovem, indignada e fervorosa, das mentiras e fraudes dos diversos poderes. Esses "espaços" colocam em evidência um certo modo de interrogação do presente, habitado pela suspeita, pela dúvida e pelo desespero.
Ao usar da palavra, Céu Guerra, sob a clara definição de uma figura unívoca, disse, da "dívida", ser uma "dívida infame", da qual não somos responsáveis. Explicou que a contraconduta em que sobrevivemos é-nos aplicada como um castigo insuportável, por uma gente que está "do outro lado"; quer dizer: uma gente inacabada e irresolvida. Céu Guerra não cultiva a neutralidade de espírito, e o fervor com que diz o que tem a dizer empolga-nos e avisa-nos de que está "do nosso lado." Sempre esteve.
Os efeitos do domínio que "eles" exercem em nós, e do medo inculcado, levaram a actriz a afirmar que esta autoridade arbitrária acentuou nos portugueses a chaga da culpa. Somos "culpados" de querer ser felizes, de ambicionar viver melhor, de existir com dignidade e decência, de ter possibilidades de escolhas afirmativas. Esta nossa educação para o remorso é um dos graus da servidão exercida pelos dominantes e associa-se ao conceito religioso do pecado, que nos persegue e manieta.
Foi um momento de luz oferecido por uma mulher intrinsecamente ligada ao nosso tempo. A recusa da obediência pertence ao próprio desejo de liberdade que o homem acalenta. Há anos, em Santiago de Compostela, assisti, num teatro apinhado, a uma plateia que, de pé, e durante muitos minutos, aplaudiu a figura franzina da portuguesa, terminada a interpretação genial de uma peça cerzida por Hélder Costa de textos de Gil Vicente. Nessa mesma noite, durante uma homenagem a Manuel Maria, na presença, entre outros, de Mendez-Ferrín, o poderoso autor de Bretanha Esmeraldina, Céu Guerra recitou o poema dedicado a Camões por Sophia. "Vais ao Paço pedir a tença/ E pedem-te paciência [...] Este país te mata lentamente." Inesquecível.
Ao vê-la e ao ouvi-la, como tantas e tantas vezes a vi e ouvi em palco e nos grupos das afinidades electivas, dando asas à esperança sequestrada, ora uma face sombria ora iluminada, ora terna ora colérica, recordei tudo isto, para vos lembrar de que a força da razão impõe-se sempre à brutalidade do capricho e às veleidades da prepotência.
«DN» de 24 Out 12

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