D. Policarpo não está cá
Por Baptista-Bastos
D.
JOSÉ POLICARPO, cardeal-patriarca de Lisboa, disse, em Fátima, ser
contra as manifestações populares, as quais, assim como as revoluções,
nada resolvem. A frase é inquietante, proferida por quem é: um homem
culto, conhecedor da História e dos movimentos sociais que explicam e
justificam as modificações políticas. Mais: numa altura em que o País
vive uma crispação inédita, onde a fome, a miséria e a angústia estão
generalizadas, as palavras de D. Policarpo não são, somente, insensatas -
colocam o autor no outro lado do coração das coisas.
Diz, ainda, o
solene purpurado: "Até que ponto é que nós construímos uma saúde
democrática, com a rua a dizer como se deve governar?" Não contente com a
afirmação adianta, sem hesitar e sem pejo: "O que está a acontecer é
uma corrosão da harmonia democrática, [sic] da nossa Constituição e do
nosso sistema constitucional."
D. Policarpo deve saber que a
legalidade do voto não legitima acções de dissolução, como as
praticadas, diariamente, por este Governo, contra as populações, contra a
Constituição, contra as normas mais elementares do viver democrático.
Deve também saber que a rua possui o poder de corrigir, com o protesto, a
insolência de quem se julga detentor do direito absoluto. "Vamos
cumprir o nosso rumo, custe o que custar", na expressiva vocação
totalitária do primeiro-ministro, é, isso sim, "uma corrosão da harmonia
democrática." E D. Policarpo, que parece crer em alguns absurdos,
acredita, seriamente, que os portugueses vivem, mesmo, nessa benfazeja e
bendita concórdia? Só assim se justificaria a enormidade das suas
declarações.
O pacifismo e a magnitude das últimas manifestações
podem e devem ser interpretados como uma insubmissão de dissidência, e
repúdio pela maneira como somos conduzidos e governados. No fundo, a rua
é o lógico prolongamento de um mal-estar que o cardeal parece
dramaticamente ignorar ou omitir. Ele não gosta da rua, e está no seu
direito. Mas já não é de seu direito condenar aqueles que recusam a
servidão imposta por esta "harmonia democrática", quando ela é
tripudiada por um Governo que exerce o poder nas raias da ilegalidade,
como o asseveram o Tribunal Constitucional e muitos outros
constitucionalistas.
Sabe-se que D. Policarpo sempre foi muito
recatado em condenar os desmandos do poder. Ele é mais das meigas coisas
celestinas do que das asperezas terrenas. Assim, serviu-se, acaso
excessivamente, ao longo dos anos, de metáforas mimosas para não dizer o
que dele se esperava: a clareza do verbo e a argumentação qualitativa
do requisitório evangélico. Desta vez, porém, a frase foi desprovida de
adornos. E, com irada exacerbação, deu amparo e continuidade às ideias e
aos processos do poder, vituperando aqueles que, legitimamente, o
contestam.
Valha-o Deus!
«DN» de 17 Out 12 Etiquetas: BB
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