A Receita do FMI
Por
Maria Filomena Mónica
O FMI é uma espécie de call
center internacional para países em aflição. Os governantes desgovernados carregam
num botão e, do outro lado, ouvem uma voz com um timbre metálico: «Se necessita
de ajuda financeira, carregue no 1»; «Se necessita de receitas para cortes no
Estado, carregue no 2» e por aí adiante. Tudo idêntico às vozes que nos atendem
quando, em casa, temos problemas com a electricidade. Tal como sucede nestes
casos, raramente o medicamento é o recomendado. Quando se trata de máquinas
ainda vá, mas quando, como é o caso, estamos a falar de seres humanos, a
questão é grave.
Atenho-me ao sector que melhor conheço, o
ensino. Vejamos o que propõe o FMI? O despedimento de 50.000 docentes do Ensino
Básico e Secundário e a entrega das escolas à iniciativa privada. Apenas
abordarei hoje a primeira receita, deixando a segunda, a da «escolha», para um
próximo artigo. Pode ser que existam, nalgumas escolas, professores a mais,
como existirão muitos que, por serem incompetentes, deveriam ir para a rua. Mas
não é disso que trata o FMI mas tão só de diminuir as despesas do Estado, para
o que apresenta um número, o da ratio professores/alunos,
que nem actualizado está.
Estes técnicos querem saber tanto de exactidão
estatística quanto de realidade. Desconhecem, por exemplo, que os docentes
passam mais tempo a responder aos formulários que o governo lhes manda pela
Net, a frequentar reuniões tontas inventadas pelo Executivo e a tentar decifrar
uma legislação que muda todos os dias do que a preparar e a dar aulas. Como nunca
entraram numa escola não viram os milhares de planos de recuperação, as
centenas de relatórios (de direcção de turma, de coordenação, de aproveitamento
escolar) e os milhões de planos individuais de trabalho que os professores são
obrigados a elaborar. Em vez do corte no número de docentes, o FMI deveria ter
proposto a demissão dos burocratas do Ministério, dos professores destacados em
gabinetes e dos «especialistas» em Ciências de Educação. No final, até poderiam
analisar a ratio motorista por
Ministro e Secretários de Estado, o que os teria levado à conclusão que dois
terços são dispensáveis.
Mas o que me preocupa é a ignorância
relativamente à evolução da escolaridade em Portugal, o que leva a que seja
mais difícil ensinar um português do que um finlandês. Alguém deveria ter
recordado a estes cérebros que a evolução da taxa de analfabetismo em Portugal
não tem paralelo na Europa. Em vésperas da Revolução de 1974, a percentagem de
analfabetos ainda era de 26%. É difícil imaginar um país onde o número de
factores adversos à escolarização fosse tão elevado. O resultado está à vista.
Muitos dos alunos contemporâneos têm avós analfabetos e pais que não passaram
da 4.ª classe. Na actual crise, quando é o desemprego que os espera, a maior
parte não entende o que está a fazer na escola. Os técnicos do FMI deveriam ter
sido obrigados a leccionar em Rio do Mouro, Baião e Rabo de Peixe. Com um pouco
de esforço, talvez conseguissem entrever a realidade.
«Expresso» de 19 Jan 13Etiquetas: FM
4 Comments:
Os meus parabéns a Maria Filomena Mónica.
Fossem muitos a pensar assim, a falar assim, e a serem consequentes e este país tinha que ter futuro.
Os professores de Portugal, especialmente os do ensino básico e secundário, muito devem a Maria Filomena Mónica. Pela lucidez. Pela clareza. Pela coragem. Pela simples honestidade.
É a minha opinião. Eu muito grato lhe fico.
Tomara que uma fracção, ainda que minoritária, dos nossos homens políticos se lhe pudesse comparar.
Especialmente aquela chusma que enche o parlamento.
Agradeço a oportunidade que me deu de ler este seu texto. É preciso quebrar as trevas, muitas vezes disfarçadas de verdades.
Este comentário foi removido pelo autor.
Há quanto tempo não ouve falar da "dívida dos países do 3º mundo"?
Para além de mudanças de agenda política, a verdade é que essa tão falada dívida desapareceu, foi, em parte, substituída por crescimento e muito por causa das políticas do FMI. De tal modo que os cínicos apontam o FMI como uma organização sobredimensionada em muitos milhares de pessoas.
Agora, os professores.
De uma classe média tradicional, creio ter pertencido à primeira geração na minha família a frequentar a escola primária "oficial", numa turma de 40 alunos, interclassista e com bons resultados. O mesmo no liceu - início dos anos 70 -, onde estive, no 1º ano numa turma com 40 alunos. Lembro-me de já então haver diferenças - ligeiras - da qualidade de ensino nalgumas disciplinas atribuíveis um pouco à preparação e muito ao jeito dos professores. Uma difusa consciência de escassez de meios - havia muito pouco naquele liceu recém-instalado dirigido por um indefectível da cultura inglesa - creio que propiciava uma cultura de economia, como poucas concessões a gastos de tempo e meios, tanto por parte de alunos quanto de professores.
Dito isto: li o relatório, quando saiu. Verifiquei, na net, sumariamente, os indices de aluno por professor, e números totais de professores por essa Europa. E creio que despedir 50 000 deles é um bom começo.
Decerto que estão assoberbados por burocracias - mas sabe que o modo de os burocratas lidarem com esse problema é o aumento do número de funcionários e nunca a redução da burocracia.
Por incrível que pareça - "despedir um professor, que pecado!" - parece-me mesmo um bom e imprescindível caminho.
Sei que o nosso background . que refere - é mau. No entanto, a Espanha vinda do franquismo está, hoje, 21 lugares à frente de Portugal no índice de alfabetização por países. Nunca assisti em Portugal - que me lembre - a qualquer iniciativa de professores para promover a alfabetização.
Há dias, um sobrinho meu, bom aluno, inteligente, nível 5/5 leu em voz alta uma notícia de jornal. Tinha uma leitura gaguejada, hesitante, má, como me lembro que tinham alguns filhos de feirantes, quando, por semanas frequentavam a escola primária onde andei, nos anos 60. Estupefacto, pedi ao irmão - também um aluno de 5s - que lesse: a mesma incrível má qualidade.
Por mim, despedia vários professores naquele mesmo dia.
Como é possível que um professor não mande ler os alunos? Como é que se conforma com práticas analfabetizantes? O que estão lá a fazer? 50 000 é um bom, um excelente começo.
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