22.1.13

A Receita do FMI

Por Maria Filomena Mónica
O FMI é uma espécie de call center internacional para países em aflição. Os governantes desgovernados carregam num botão e, do outro lado, ouvem uma voz com um timbre metálico: «Se necessita de ajuda financeira, carregue no 1»; «Se necessita de receitas para cortes no Estado, carregue no 2» e por aí adiante. Tudo idêntico às vozes que nos atendem quando, em casa, temos problemas com a electricidade. Tal como sucede nestes casos, raramente o medicamento é o recomendado. Quando se trata de máquinas ainda vá, mas quando, como é o caso, estamos a falar de seres humanos, a questão é grave.
Atenho-me ao sector que melhor conheço, o ensino. Vejamos o que propõe o FMI? O despedimento de 50.000 docentes do Ensino Básico e Secundário e a entrega das escolas à iniciativa privada. Apenas abordarei hoje a primeira receita, deixando a segunda, a da «escolha», para um próximo artigo. Pode ser que existam, nalgumas escolas, professores a mais, como existirão muitos que, por serem incompetentes, deveriam ir para a rua. Mas não é disso que trata o FMI mas tão só de diminuir as despesas do Estado, para o que apresenta um número, o da ratio professores/alunos, que nem actualizado está.
Estes técnicos querem saber tanto de exactidão estatística quanto de realidade. Desconhecem, por exemplo, que os docentes passam mais tempo a responder aos formulários que o governo lhes manda pela Net, a frequentar reuniões tontas inventadas pelo Executivo e a tentar decifrar uma legislação que muda todos os dias do que a preparar e a dar aulas. Como nunca entraram numa escola não viram os milhares de planos de recuperação, as centenas de relatórios (de direcção de turma, de coordenação, de aproveitamento escolar) e os milhões de planos individuais de trabalho que os professores são obrigados a elaborar. Em vez do corte no número de docentes, o FMI deveria ter proposto a demissão dos burocratas do Ministério, dos professores destacados em gabinetes e dos «especialistas» em Ciências de Educação. No final, até poderiam analisar a ratio motorista por Ministro e Secretários de Estado, o que os teria levado à conclusão que dois terços são dispensáveis.
Mas o que me preocupa é a ignorância relativamente à evolução da escolaridade em Portugal, o que leva a que seja mais difícil ensinar um português do que um finlandês. Alguém deveria ter recordado a estes cérebros que a evolução da taxa de analfabetismo em Portugal não tem paralelo na Europa. Em vésperas da Revolução de 1974, a percentagem de analfabetos ainda era de 26%. É difícil imaginar um país onde o número de factores adversos à escolarização fosse tão elevado. O resultado está à vista. Muitos dos alunos contemporâneos têm avós analfabetos e pais que não passaram da 4.ª classe. Na actual crise, quando é o desemprego que os espera, a maior parte não entende o que está a fazer na escola. Os técnicos do FMI deveriam ter sido obrigados a leccionar em Rio do Mouro, Baião e Rabo de Peixe. Com um pouco de esforço, talvez conseguissem entrever a realidade.
«Expresso» de 19 Jan 13

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4 Comments:

Blogger José Batista said...

Os meus parabéns a Maria Filomena Mónica.

Fossem muitos a pensar assim, a falar assim, e a serem consequentes e este país tinha que ter futuro.

Os professores de Portugal, especialmente os do ensino básico e secundário, muito devem a Maria Filomena Mónica. Pela lucidez. Pela clareza. Pela coragem. Pela simples honestidade.

É a minha opinião. Eu muito grato lhe fico.

Tomara que uma fracção, ainda que minoritária, dos nossos homens políticos se lhe pudesse comparar.
Especialmente aquela chusma que enche o parlamento.

22 de janeiro de 2013 às 19:46  
Anonymous Anónimo said...

Agradeço a oportunidade que me deu de ler este seu texto. É preciso quebrar as trevas, muitas vezes disfarçadas de verdades.

22 de janeiro de 2013 às 21:17  
Blogger CM said...

Este comentário foi removido pelo autor.

23 de janeiro de 2013 às 15:50  
Blogger CM said...


Há quanto tempo não ouve falar da "dívida dos países do 3º mundo"?
Para além de mudanças de agenda política, a verdade é que essa tão falada dívida desapareceu, foi, em parte, substituída por crescimento e muito por causa das políticas do FMI. De tal modo que os cínicos apontam o FMI como uma organização sobredimensionada em muitos milhares de pessoas.
Agora, os professores.
De uma classe média tradicional, creio ter pertencido à primeira geração na minha família a frequentar a escola primária "oficial", numa turma de 40 alunos, interclassista e com bons resultados. O mesmo no liceu - início dos anos 70 -, onde estive, no 1º ano numa turma com 40 alunos. Lembro-me de já então haver diferenças - ligeiras - da qualidade de ensino nalgumas disciplinas atribuíveis um pouco à preparação e muito ao jeito dos professores. Uma difusa consciência de escassez de meios - havia muito pouco naquele liceu recém-instalado dirigido por um indefectível da cultura inglesa - creio que propiciava uma cultura de economia, como poucas concessões a gastos de tempo e meios, tanto por parte de alunos quanto de professores.
Dito isto: li o relatório, quando saiu. Verifiquei, na net, sumariamente, os indices de aluno por professor, e números totais de professores por essa Europa. E creio que despedir 50 000 deles é um bom começo.
Decerto que estão assoberbados por burocracias - mas sabe que o modo de os burocratas lidarem com esse problema é o aumento do número de funcionários e nunca a redução da burocracia.
Por incrível que pareça - "despedir um professor, que pecado!" - parece-me mesmo um bom e imprescindível caminho.
Sei que o nosso background . que refere - é mau. No entanto, a Espanha vinda do franquismo está, hoje, 21 lugares à frente de Portugal no índice de alfabetização por países. Nunca assisti em Portugal - que me lembre - a qualquer iniciativa de professores para promover a alfabetização.
Há dias, um sobrinho meu, bom aluno, inteligente, nível 5/5 leu em voz alta uma notícia de jornal. Tinha uma leitura gaguejada, hesitante, má, como me lembro que tinham alguns filhos de feirantes, quando, por semanas frequentavam a escola primária onde andei, nos anos 60. Estupefacto, pedi ao irmão - também um aluno de 5s - que lesse: a mesma incrível má qualidade.
Por mim, despedia vários professores naquele mesmo dia.
Como é possível que um professor não mande ler os alunos? Como é que se conforma com práticas analfabetizantes? O que estão lá a fazer? 50 000 é um bom, um excelente começo.

24 de janeiro de 2013 às 16:44  

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