19.2.13

O suspeito

Por Helena Matos
Se assaltarmos alguém e lhe roubarmos quatro mil euros seremos sempre alegados assaltantes que praticaram um alegado furto, que quiçá alegadamente agrediram a alegada vítima e teremos direito a defesa oficiosa e a muitas explicações psico-antropológicas sobre o que nos levou ao acto que alegadamente praticámos.
REGRA geral, as culpas pelos alegados actos vão para a "sociedade actual", eterna suspeita, ou desde que, para azar das mulheres, Freud descobriu o divã, para aquilo que as nossas mães fizeram quando dávamos os primeiros passos. Mas se, enquanto empresários ou trabalhadores por conta própria, devermos mais de 3500 euros à Segurança Social podemos acabar na prisão. E, como é óbvio, no universo do contribuinte não há alegados. Apenas criminosos.
Ninguém é inocente até prova em contrário mas sim naturalmente culpado. Primeiro paga-se. Depois contesta-se. Sem psicologias nem sociologias. E muito menos sem os garantismos do Direito porque em matéria de justiça tributária e contestação fiscal apenas os muito ricos conseguem não ser tratados à partida como culpados.
A polémica em torno da obrigatoriedade das facturas apenas evidenciou este facto consumado: vivemos numa sociedade que tem uma retórica de crescentes direitos para o cidadão, sujeito activo de direitos, cujo reverso implica uma tirania para o contribuinte, sujeito passivo de deveres. Aos imprescindíveis direitos à vida, à liberdade, à propriedade, ao trabalho... foram-se juntando outros direitos que em vez de garantirem que cada um podia fazer com a sua vida o que quisesse independentemente da sua cor, sexo ou religião, procuraram garantir uma panóplia de bens e serviços de que entre nós ficará como símbolo o cheque-bebé.
A política tornou-se num catálogo de promoções: a esquerda mais radical depois de prometer económicos amanhãs cantantes na pátria socialista passou a defender o dispendioso investimento público e o tudo gratuito para todos nas terras do nefando capitalismo. A direita para não ficar atrás no ofertório prometia, piedosa, um País sem pobres e o centrão, cheio de complexos de culpa por não prometer tanto, ia prometendo o que não podia e garantindo que amanhã ainda podia prometer mais. Enquanto esta girândola rodava uma figura foi-se agigantando até atravancar por completo as nossas vidas: o contribuinte de cujos bolsos sai aquilo que os políticos dizem que dão e também o dinheiro para sustentar essa máquina redistributiva que cada vez distribui menos porque gasta tudo consigo e que dá pelo nome de Estado.
Hoje em dia cada um de nós é uma espécie de Olívia costureira versus Olívia patroa, número criado por Ivone Silva para dar conta dos paradoxos vividos nos tempos em que a luta de classes era o motor da História. Agora a luta de classes está no museu e a luta trava-se entre o cidadão que perde direitos e o contribuinte que não consegue pagar mais. Desgraçadamente um e outro são a mesma pessoa.
«DE» de 19 Fev 13

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