6.3.13

Ai aguentam, aguentam

Por Antunes Ferreira 
DE REPENTE, Segismundo Carlos Casto olhou para o lado e viu o tal Fernando Ulrich deitado numa caixa de cartão desdobrada e com jornais a servir-lhe de lençóis e cobertor. Podia lá ser? O gajo que dissera que os sem-abrigo aguentavam a austeridade, estava agora incluído no grupo deles. Tinha a barba por fazer, os dentes, poucos, aliás, cariados e amarelos escuros. E usava um fato a fingir de fato, esgaçado e cosido por tudo o que era sítio, além de que lhe pendia dos lábios uma beata, apagada, apanhada por certo nalguma sarjeta. Raios e coriscos, não estava a ver bem. 
De resto, o Fernandes da farmácia, um tipo porreiro que às vezes lhe arranjava umas aspirinas e um xarope daqueles que aparecem na televisão e curam tosses secas e molhadas e não sabia mais o quê, dissera-lhe já la iam uns bons três anos que tinha de usar óculos, o problema era ir ao médico que o farmacêutico lhe indicara, e depois ao oculista e dissesse quem o recomendara talvez o sujeito até fizesse um grande desconto para não dizer que a armação, em segunda ou terceira mão era de graça, o problema eram as lentes caras como caralho, mas nunca aproveitara o conselho, a vida estava pelas horas da morte e hoje era o que se via, com a tal crise e a tal autoridade, os criaturos do seu grupo diziam austeridade, mas ele ia mais pela primeira. Feitios.
Porém, quem lhe havia de dizer que ali encontrava o dito Ulrich em condições se calhar piores do que a sua, ele, Segismundo, sempre tinha uns restos de cobertor oferecidos já lá iam uns anos pelas meninas que vinham numa carrinha, os ajudavam, café com leite quente e pão com margarina, a manteiga estava pelos olhos da cara, no Natal iam comer bacalhau com todos e bebiam umas canecas de tinto do Cartaxo, o que o ia fazendo mais ou menos feliz. Mas, sempre relembrando que quando a esmola é grande o pobre deve desconfiar.
A verdade é que o Ulrich estava na miséria, um pouco pior, se assim se podia dizer, do que a sua, se calhar, nem o Freitas da Flor das Avenidas lhe dava as sobras dos pratos que não tinham tido grande saída. E não lhe importava muito que fosse carne de cavalo, quando era puto até havia talhos que assim diziam: carne de cavalo. E comia-se bem, claro que os tempos eram outros, o Salazar com a ajuda da Senhora de Fátima safara-nos da guerra, era um tipo porreiraço, um tanto fradesco, mas havia a carne de cavalo para quem a quisesse comprar, pois a de vaca ou de vitela, nem vê-las. E de baleia, diziam na rádio, ao almoço, ao jantar e à ceia, coma carne de baleia. Propaganda, como anos depois era o boato é crime e fere como uma lâmina. 
Até de burro marchava, mas era proibida, não sabia por quê, todos comiam a mesmíssima forragem, relvas (mas não era este malandro), tudo ervas que em Angola, quando andara na tropa e fizera a guerra lhes chamavam capim. Os tempos tinham mudado, olá se tinham, o que antes era proibido hoje era permitido, pelo menos até ver, porque com esta gente no poleiro, aliás nos poleiros de Belém, de São Bento e de outros, ninguém sabia o que lhe caberia em sorte.
Agora, esta do Ulrich tinha que se lhe dissesse. Não era o tipo do ai aguentam, aguentam, se os sem-abrigo aguentam, por que razão os Portugueses não haviam de aguentar. O grande palhaço que ganhava rios de dinheiro fazia agora parte desses tais miseráveis a quem chamavam dessa maneira. Ele nem cobertor, ainda que remendado, tinha. E com uns pelos mal semeados pela cara, nada era do finório que aparecera na televisão e mandava num banco o BCI, a que ele, Segismundo, chamava no gozo que era o Banco dos Cabrões e Invertidos, ou seja panilas. 
Do outro lado da soleira da porta que lhe servia de abrigo, o bandalho pagava-as todas, todas as filhas-de-putice, todas as fanfarronadas, todos os ditos que havia bolsado da cloaca imunda. Pois se até os sem-abrigo… Agora torcia a orelha e não deitava sangue. O vampiro que o Ulrich era é que sugava o sangue da malta. O diabo, se é que o havia, ia leva-lo para as profundezas do inferno, se existisse tal coisa, abrenúncio, lagarto, lagarto, lagarto!
Levantou-se, era só atravessar a rua e ia dar-lhe umas galhetas a sério no trombil, ai ia, ia. Foi nesse preciso momento que o Ladeiras, inquilino da mesma portaria, o abanou, tu não me deixas dormir descansado, porra!, nem aqui. Até tentaste dar-me uns safanões, sossega homem, vira-te para lá e fica quietinho, deves estar a ter pesadelos. Segismundo, esfregou os olhos ensonados, espreguiçou-se e acordou. Sonhos desses eram mais do que raros, eram raríssimos. Tinha de aguentar os cavalos e deixar-se de cheirar cola, ou fumar uns charros, ou seja, o filho da puta é que tinha razão: ai aguentam, aguentam. Poi se até os sem-abrigo... Levantou-se e foi mijar à esquina, não fosse o diabo tecê-las e ainda aparecia um chui que lhe deitaria a luva.

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1 Comments:

Blogger Luís Bonito said...

Pois, "umas galhetas no trombil", melhor também não encontro.
Isto tem que se levar com o humor do Antunes Ferreira :-)

6 de março de 2013 às 19:23  

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