14.10.13

Ninguém Tem Vergonha?

Por Maria Filomena Mónica 
OS JORNAIS andam cheios de escândalos no domínio da saúde. Ele são farmacêuticos que cobram por remédios que não vendem, ele são médicos que passam receitas a mortos, ele é o Estado que dá um subsídio às farmácias que se dignam cumprir a lei. Numa investigação feita no passado mês de Julho, a chamada «Operação Prescrição de Risco» (o que eu gosto dos nomes que a PJ dá aos casos que investiga) foram detidos três médicos, dois farmacêuticos, um delegado de propaganda médica e um empresário de distribuição de medicamentos, por suspeita de fraude ao Serviço Nacional de Saúde no valor de vários milhares de euros. Depois de comparticipados, os medicamentos eram reintroduzidos no circuito comercial ou exportados. Durante a operação «Remédio Santo» foi apreendido, a um vendedor de uma empresa farmacêutica, um computador com a lista dos «presentes» que os médicos recebiam por passarem remédios daquela marca. Pelos vistos, ninguém – nem os cidadãos, nem os clínicos, nem os farmacêuticos – têm vergonha de aldrabar.
Há quem pense que o sentimento de vergonha é um traço conservador, mas não é verdade: trata-se de uma característica positiva das sociedades liberais. Curiosamente, é até mais importante em países democráticos do que em autoritários, porque coloca um freio a condutas imorais sem que a lei tenha de ser chamada para cumprir a missão punitiva. J. S. Mill defendeu sempre que as leis não deveriam interferir na vida privada, a não ser quando os comportamentos individuais causassem um mal evidente a terceiros, mas não nos podemos esquecer que foi ele quem insistiu que as escolhas pessoais, mesmo as que se situam dentro da lei, podem conduzir à desaprovação moral. Há algumas semanas, a Segurança Social detectou milhares de baixas médicas com irregularidades graves, tais como a ausência da identificação do código da célula profissional do médico e do centro de saúde. Em 2012, foram comunicadas à Segurança Social 1.503.038 baixas, das quais 62.610 sem identificarem a unidade de saúde. Há mesmo um top dos médicos que, em 2012, mais atestados assinaram, surgindo, à cabeça, três a trabalhar no concelho de Guimarães. Muitos destes atestados serão falsos, ou seja, trata-se de médicos que, sem vergonha, colocam o seu nome em documentos onde declaram que um indivíduo são está doente, a fim de deixar de trabalhar continuando a receber o salário. 
Lembro-me que, em 2.000, por coincidência em Guimarães, cerca de mil alunos das duas Escolas Secundárias locais «adoeceram» de repente, não tendo comparecido às provas globais de acesso ao Ensino Superior. Na sequência desta maleita colectiva, foram apresentados atestados. Alguns médicos e alguns alunos acabaram em tribunal. O julgamento, que teve lugar seis anos depois, com apenas trinta arguidos, terminou na absolvição. De todos. Alguém considera isto – a conivência dos pais, a imoralidade dos médicos, o tempo de duração do julgamento – uma coisa normal? Eu não. 
«Expresso» de 5 Out 13

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1 Comments:

Blogger José Batista said...

No nosso país, infelizmente, trata-se de uma "anormalidade normal".
Estas "normalidades anormais" englobam toda a sociedade, descendo do topo da pirâmide sócio-política até à base ou subindo da base até ao topo, se pensarmos num grau crescente de refinamento e de desfaçatez.
Por alguma razão, quando vivemos em democracia, parecemos uma comunidade laboriosa e pressurosa a preparar a queda no abismo, coisa que conseguimos em poucas décadas. Em tempos de falta de liberdade e escravidão, aí temos um grau de acomodação e de resiliência notáveis.
É um fado, dizem alguns que com as vogais em posição trocada.

14 de outubro de 2013 às 15:57  

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