3.12.13

A Escola Não é um Supermercado

Por Maria Filomena Mónica
EM GERAL, afasto-me dos documentos emanados do governo como o diabo da cruz, mas, de vez em quando, a curiosidade vence o nojo. Foi assim que acabei por ler a proposta, aprovada no Conselho de Ministro de 30 de Outubro de 2013, intitulada Um Estado Melhor. Concentro-me no sector que melhor conheço, a educação.
O que importa ao actual Executivo é retirar o Estado do sistema de ensino. Em nome da «diversidade», o poder está a montar dois sistemas: um, privado, de qualidade variável, e outro que se tornará num gueto, onde acabarão os filhos dos pobres. Por outro lado, o governo tenciona encafuar 50% dos alunos do secundário no ensino profissional. Acontece que nada está preparado, que as empresas não querem estes alunos e a que a docência é um calvário. Há, por fim, uma cláusula que não fui capaz de decifrar: que diabo significa a entrega das escolas a comunidades de professores «mediante procedimento concursal», a qual abrangerá a propriedade dos estabelecimentos? Tenciona o Estado vender, ou dar, as escolas ao primeiro que passar na rua? 
Há uns meses, denunciei os perigos do cheque-ensino e dos chamados contratos de associação, um esquema que olha os alunos como sacos de batata a entregar às escolas privadas. No meu país, em vez de serem os pais a escolher, é o Estado quem o faz. Na boca dos responsáveis pelo sector, «autonomia» é equivalente a um subsídio aos ricos para que eduquem os filhos em escolas de elite sem terem de pagar o custo real. 
Na retórica, as escolas passaram a ser vistas como supermercados: os pais teriam a opção de comprar o ensino dos filhos como se de um pacote de arroz se tratasse. Mas iria lá o velho Portugal autorizar uma coisa destas? Por cá, o dinheiro é entregue às escolas privadas que o Secretário de Estado Casanova de Almeida prefere. Quais pais, qual carapuça! 
É verdade que não há uma correlação rígida entre classe social e êxito escolar: todos conhecemos crianças que conseguiram superar a sua origem, mas temos de nos lembrar que se trata de casos excepcionais e que, para os detectar, é necessário que os professores disponham de tempo. De tempo, repito, porque só ele permite que um docente conheça quem tem diante de si. Se Obama chegou à Universidade de Harvard foi porque as escolas o ajudaram e porque a mãe e a avó maternas o apoiaram. Sem isto, sabe Deus o que lhe teria acontecido. Pelo contrário, o actual projecto põe em risco a pequena escola pública, onde os professores sabiam de cor o nome dos alunos, onde estes eram acompanhados de perto e onde a aprendizagem seguia o ritmo de cada um. Em suma, o que se projecta é um crime. 
PS: O Liceu Camões está a cair de podre, tendo estado a reunir dinheiro para as obras mais urgentes, pelo que decidi doar-lhe 10% das receitas do meu livro «A Sala de Aula», a sair proximamente. As minhas netas frequentaram-no com proveito e prazer, pelo que lhe estou grata. Para quem pense que a causa vale a pena, aqui fica o NIB: 0035 0292 0000 5547 1304 1. 
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«Expresso» de 30 Nov 13

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2 Comments:

Blogger José Batista said...

Análise brilhante. Incisiva. Certeira.

Os meus muito sentidos parabéns.

Claro que às crianças pobres do meu país restam, cada vez mais, perspectivas sombrias.

Na medida em que me for possível darei o meu modestíssimo (e praticamente irrelevante) contributo para a recuperação do Liceu Camões. Um gesto mais para afagar a minha própria consciência que para minorar o crime.

Muito obrigado.

3 de dezembro de 2013 às 21:52  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Resposta de MFM:

«A José Batista: o que importa não é tanto a quantia que se doa ao Liceu Camões – embora os ricos pudessem contribuir, o que suspeito não lhes passar pela cabeça – mas a ideia, incipiente em Portugal, de que, enquanto cidadãos, podemos e devemos fazer qualquer coisa. Claro que, em princípio, o restauro das Escolas Secundárias compete ao Estado (afinal, é para isso que pagamos impostos), mas tendo em conta que este não se vai reformar tão cedo, tentemos fazer nós qualquer coisa para que os filhos dos mais desfavorecidos tenham algumas oportunidades de subir na vida. Grão a grão… Quem dera que todos agissem assim,
Maria Filomena»

4 de dezembro de 2013 às 13:10  

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