Por C. Barroco Esperança
Quando Dilma Rousseff reivindicou a qualidade de Presidenta da República do Brasil para designar a função, pela primeira vez por uma mulher em todo o espaço lusófono, provocou crispação e animosidade até entre os portugueses mais entusiastas da sua eleição.
Não é a inflexibilidade do idioma luso que o impede, pelo contrário, mas o carácter misógino das religiões abraâmicas, neste caso, da católica.
Deus e o Diabo, anjos e profetas, apóstolos e clérigos não têm feminino. Na angelogia não há ‘anjas’ em qualquer grau referido por Tomás de Aquino na escala decrescente da sua importância: 1. Serafins, 2. Querubins, 3. Tronos, 4. Dominações, 5. Virtudes, 6. Potestades, 7. Principados, 8. Arcanjos, 9. Anjos.
A Igreja considera a mulher inferior e impura. Paulo de Tarso, obreiro da primeira cisão conseguida do judaísmo, designava como obscenos o cabelo e a voz das mulheres. Essa misoginia tribal e patriarcal foi responsável pela sujeição feminina durante séculos e ainda influencia o próprio idioma.
Na Igreja não há femininos. Diácono, presbítero, padre, cónego, monsenhor, arcipreste, bispo ou cardeal não têm variação de género. A plausível e longínqua presença de uma admirável mulher no trono pontifício logrou a única exceção – ‘papisa’.
Nas Forças Armadas, apanágio do poder do Estado, não há feminino para soldado, cabo, sargento, alferes, tenente, capitão, major, tenente-coronel, coronel ou general, nem para os postos equivalentes da Marinha de Guerra.
Durante a ditadura fascista era interdito o acesso de mulheres à carreira militar, judicial e diplomática. Não surpreende que a variação de género para o substantivo ‘presidente’ incomode tanto quanto ainda arranha o de embaixadora para quem aprendeu na escola primária a palavra embaixatriz, para designar … a mulher do embaixador, ou juíza para quem nunca previu que pudesse haver mulheres com beca.
Quando o poder era de origem divina, tantas vezes de filhos bastardos ou de progenitura duvidosa, não faltou à língua portuguesa flexibilidade para títulos nobiliárquicos: barão, conde, duque, marquês, infante, príncipe ou rei. Infante tem direito ao feminino que ainda se nega a presidente. Só às mulheres dos beis de Tunes o idioma luso negou o feminino de ‘bainhas’ em analogia com as consortes reais ou princesas favorecidas por não terem irmãos varões.
Bendito jacobinismo da Revolução Francesa. Acabaram os fidalgos, ficaram os títulos.
A desigualdade de género persiste na religião, na política e na gramática. É uma questão de poder.
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Apostila: ‘capitã’ é o legítimo feminino de capitão, mas ainda é ilegal nos quartéis, tal como ‘juíza’, que continua ausente do léxico judicial.
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Ponte Europa / Sorumbático
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Ponte Europa / Sorumbático
Etiquetas: CBE
4 Comments:
Caro Carlos,
Parece um post simples, mas não é.
Muito pertinente e bem escrito para que nos tente tirar desta ignorância estrutural deste povo.
Cumprimentos
Luis Filipe
Por mim, relativamente a conceitos como o de "presidente" resolvia-se a questão de outro modo: a palavra passaria a constar nas gramáticas como comum aos dois géneros. Porventura, até já será assim... Tanto me faz dizer "o presidente" como "a presidente" e é assim que desde sempre, na profissão que desempenho, nos referimos a quem, mulher ou homem, preside a uma reunião, por exemplo.
"Presidenta" é, francamente, um palavra que não me soa bem e que me desagrada. E não creio que seja por falta de hábito ou, muito menos, devido a preconceito contra as mulheres.
Também se poderia dizer "o sacerdote" ou "a sacerdote", mas já não me soaria bem "sacerdota"... ou "padra"... etc...
Este comentário foi removido pelo autor.
Falando (ainda) de géneros, ficou-me uma curiosa gralha no comentário anterior, quando escrevi "um palavra" - em que não bate o género do artigo, a que agora já não chamam assim..., com o do substantivo, que também já não se designa deste modo.
A gramática vai mudando, mas nem sempre para melhor.
Um caso concreto bem exemplificativo da desnecessidade de género gramatical e de alteração para melhor deu-o essa exemplar mulher chamada Natália Correia quando exigiu que a considerassem "poeta" e não "poetisa". De modo claro e límpido acrescentou a razão cristalina - a poesia não tem sexo.
E se tem não devia ter, digo eu.
A língua é um bem cultural e social de um povo. Deve ser, por isso, escrupulosamente respeitada. E a gramática é o seu normativo. Língua e respectiva gramática devem evoluir "naturalmente", a segunda enquadrando e regulando a primeira. Não é a língua propriedade de ninguém e por isso não devia ser mudada por decreto, sem o consentimento democrático dos que a falam e/ou escrevem. Não foi isso que aconteceu com o chamado "acordo" (de quem com quem, em nome de quem?) ortográfico.
Mas a nossa democracia é algo... fictícia.
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