Sem emenda - O segredo compensa
Por António Barreto
Tempos houve em que todos pagavam
pela violação do segredo de justiça: os advogados de defesa, os arguidos, os
jornalistas, os directores dos jornais, os carteiros, os motoristas e a menina
das fotocópias. Todos, menos os verdadeiros culpados, ou antes, os verdadeiros
responsáveis: os magistrados judiciais e do Ministério Público, eventualmente
uns funcionários de Justiça. A regra era a do segredo durante as fases de
instrução. A quebra do sigilo era crime. Muitas vezes, os jornalistas e os
directores dos jornais eram os únicos acusados por violação da lei. Não
interessava quem lhes fornecia as informações.
O actual regime, em traços breves
e simplificados, estabelece que o segredo deixou de ser a regra, para ser a
excepção. Isto é, apenas funciona a pedido das partes, por decisão fundamentada
do magistrado, a pedido do Ministério Público, com validação do magistrado. A
regra é a da publicidade dos processos, salvaguardada a discrição processual
pela qual cada um zelará.
Em princípio, parece que menos de
10% dos processos estão hoje abrangidos pelo segredo. O progresso foi enorme.
Os jornalistas já não são os únicos culpados. Mas, infelizmente, não se foi tão
longe quanto era possível. Ainda há muitos casos em que o segredo de justiça
protege privilégios ou encobre incompetências. Ou é administrado “à vontade do
freguês”. Acontece que, hoje, quase todos os grandes processos polémicos (políticos,
bancos, autarcas, dirigentes desportivos, grande corrupção em geral…) se
encontram nesse regime. Dos principais, há, todos os dias, fugas organizadas,
cirúrgicas ou não, parciais ou totais. A devassa é completa: documentos,
imagens, confissões, alegações, declarações, actas, relatórios, transcrições de
escutas e de interrogatórios e gravações de conversas telefónicas ou
interrogatórios vivos, isto é, conversas reais com as vozes verdadeiras, tudo
se encontra disponível nos jornais, nas redes sociais e na Internet. Podem
mesmo ouvir-se na televisão!
Esta é a mais degradante de todas
as imagens que temos actualmente da Justiça. Por todas as razões e também pela
impunidade. Não é possível exigir justiça, esperar por equidade, confiar na competência
e desejar imparcialidade neste clima de degradação de costumes e de manipulação
mafiosa de processos. A demora e os atrasos, a parcialidade e as chicanas são
brincadeiras ao lado desta devassidão.
A grande solução seria
evidentemente a de abolir o segredo de justiça. Nessas circunstâncias, se os
magistrados, os investigadores, as polícias ou os advogados entendem que
algumas das suas actividades ou iniciativas devem ser mantidas em segredo, a
bem da eficácia da justiça, não têm mais do que tomar todas as cautelas para
que assim seja. E hoje isso é absolutamente possível. E faz-se todos os dias.
Quando se quer. E quando não há quem queira o contrário.
Na ausência da solução óptima,
então teríamos uma outra também digna e de fácil execução: a de responsabilizar
o magistrado titular de cada processo em segredo pela sua manutenção. Caso haja
violação, seria esse magistrado responsabilizado disciplinar e criminalmente.
Na verdade, para além da
intencionalidade dos interessados, as violações actuais têm uma razão. Essa
razão pode ser o empenho pessoal, o ganho material ou o interesse político.
Eventualmente, a incompetência, o descuido e o desleixo. Ou a indiferença
perante a integridade da justiça e a degradação dos procedimentos, que não é
uma causa, mas simplesmente uma circunstância. Em todas estas situações, a
responsabilidade é do magistrado. Por isso deveria ser responsabilizado, processado
e castigado. Tanto disciplinar como criminalmente.
Estou convencido de que, com uma
medida deste género, a diminuição do número de violações do segredo de justiça
seria drástica, rápida e talvez total. Por enquanto, com o regime que temos,
não é o crime, é o segredo que compensa. Para mal de todos nós!
DN, 26 de Março de
2017
Etiquetas: AMB
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