3.6.18

Um morto-vivo

Por Antunes Ferreira
As estórias mirabolantes dos mortos-vivos que pelas aldeias eram contadas à lareira em noites de trovoada e que levava as crianças a terem maus sonhos por mais que usassem pendurados ao peito em cordões de prata ou de ouro ou mesmo guitas signos saimãos, figas ou outros amuletos foram agora revividas, mas ao vivo“A esses jornalistas que dizem que cruzei a linha vermelha [da ética, digo]: quando te mostram uma fotografia e uma fotografia da preparação do teu homicídio, apresentam-te o teu homicida e perguntam: queres sobreviver ou queres preservar a pureza ética, moral e espiritualidade da tua profissão [o que fazes]? És livre para escolher a ética, a pureza moral da tua profissão. Eu escolhi a opção de sobreviver.”
Pasme-se, na Ucrânia.
Passou-se o caso com um jornalista russo de seu nome Arkady Babchenko, crítico do novo czar Vladimir Putin e do Kremlin que ele comanda com mão de ferro, herança que recebeu de quando era o mandão do KGB dos tempos da URSS. Babchenko ter-se-ia dado conta de que estava na mira de assassinos mandados de Moscovo. Sabendo então que era um homem a abater refugiara-se na Ucrânia.
Até aqui tudo bem, ou melhor tudo mal. Isto quer dizer, a ser verdade, que a actual Federação Russa não perdeu os “bons” hábitos que vinham da sua antepassada próxima União Soviética. És contra? Dá-se-lhe um tiro e ponto final. Não chateias mais. Estavam as coisas neste pé e o jornalista crítico ainda não se sentia em segurança. Por isso começou a pensar em fugir de novo, desta vez para o Pólo Norte, onde se esconderia. Mas, depois, lembrou-se que o ex-espião russo Serguei Skripal também tentou esconder-se, antes de ser envenenado, e recordou ainda o incidente com o caso de Alexander Litvinenko, um ex-espião russo que morreu por envenenamento com Polônio em 2006.
Estava tramado, era um homem morto, não tinha hipótese, quando os serviços secretos ucranianos o fizeram morto. E a notícia saiu na comunicação social com foto dele em que se viam os três orifícios das balas com que fora executado. As redes sociais uniram-se aos media, ultrapassaram-nos o que é cada vez mais frequente e habitual e as declarações de repúdio quanto ao hediondo crime bem como as de solidariedade com a família do falecido tornaram-se virais.
Eis senão quando o morto aparece perfeitamente vivo durante uma conferência de imprensa apinhada para dar a informação de como se passara o crime. Foi a estupefação geral. Podia lá ser? Podia, afinal não se tratava dum caso miraculoso de ressurreição, de um Lázaro do século XXI. Foi o próprio Babchenko que explicou com muita soma de pormenores o que se passara acrescentado com uma sombra de anedota que passara muito tempo em frente dum televisor a ver como os noticiário diziam que ele tinha sido um tipo porreiro.
Tinham sido os serviços secretos ucranianos com a colaboração de excelentes maquilhadores que preparam a encenação que inclusive meteu sangue de porco e t-shirt com os três buracos das balas que tinha matado o jornalista. Choveram as perguntas. Se ele não se envergonhava de ter andado a gozar com o pagode se pensava que era método que se utilizasse e por aí fora.
Arkady Babchenko respondeu: “A esses jornalistas que dizem que cruzei a linha vermelha da ética, digo isto: quando te mostram uma fotografia da preparação do teu homicídio, apresentam-te o teu homicida e perguntam: queres sobreviver ou queres preservar a pureza ética, moral e espiritualidade da tua profissão o que fazes? És livre para escolher a ética, a pureza moral da tua profissão. Eu escolhi a opção de sobreviver.”
Ele lá sabe as linhas com que se cozeu.
Até ao momento em que entrou na sala repleta de jornalistas, todos acreditavam que Babchenko estava morto. Já no hospital, desfez-se a encenação. “Lavei-me o melhor que podia, deram-me um lençol, enrolei-me nele e depois vi as notícias que falavam do excelente tipo que eu era”, contou. As horas seguintes foram passadas em frente à televisão e a percorrer os sites dos principais jornais. “Fiquei as ver as notícias do excelente tipo que eu era”, disse, com ironia.
De volta à casa onde teria sido assassinato, o jornalista explicou que lhe foi entregue uma t-shirt com três buracos — o correspondente aos pontos de impacto dos três disparos que lhe teriam tirado a vida. De seguida bebeu o sangue de porco e foi despejado mais líquido sobre o seu corpo. A seguir, a viagem de ambulância até ao hospital, durante a qual a equipa de médicos — envolvidos na encenação — declararam o óbito. Foi levado diretamente para a morgue e, aí, a “ressurreição”.
O objetivo de toda a encenação? Expor os autores de um plano para matar o jornalista russo, exilado na Ucrânia e que já estaria informado de um plano em marcha para concretizar o seu assassinato. Babchenko começou por recusar a ideia, fugir para o Pólo Norte, esconder-se. Mas, depois, lembrou-se: “O [ex-espião russo] Skripal também tentou esconder-se]”, antes de ser envenenado, contou.
Arkady Babchenko sobreviveu. Mas isso não poupou o jornalistas a críticas. “A esses jornalistas que dizem que cruzei a linha vermelha [da ética, digo]: quando te mostram uma fotografia e uma fotografia da preparação do teu homicídio, apresentam-te o teu homicida e perguntam: queres sobreviver ou queres preservar a pureza ética, moral e espiritualidade da tua profissão [o que fazes]? És livre para escolher a ética, a pureza moral da tua profissão. Eu escolhi a opção de sobreviver.”


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