O Mundo do Escaravelho
Por Joaquim Letria
Cesare Pavese escreveu: "O consolo de uma visão consiste em acreditar nela, não que ela se trate de algo real”. E acrescentava: “As coisas que se viam pela primeira vez eram bastantes para satisfazer, mas agora requerem outro significado”.
A imagem mais forte que guardo da Televisão é a dos primeiros negros a entrarem numa universidade americana protegidos pela Guarda Nacional. Não sei porquê, mas esta visão foi mais forte e ficou mais nítida do que a outra, às cinco da manhã, do Homem a pular, pela primeira vez, na Lua, a espetar uma bandeira no meio de muitas crateras.
Um velho com fome num barraco dum subúrbio tem carências, cem mil refugiados amontoados num campo miserável e a viverem em tendas, sem carne e pouco pão são estatística.
Os males colectivos perderam importância. Milhões com fome, epidemias, bombardeamentos de cidades, guerras sangrentas perderam significado. Hoje, o que importa é a ferida da facada, o atropelamento, o disparo de balas, um corpo despedaçado, tudo o suficiente para se anunciar que “as imagens que se seguem podem chocar os espectadores mais sensíveis”.
Dantes havia reféns. Os reféns eram excitantes, fossem fregueses dum supermercado, passageiros dum avião desviado, clientes dum banco assaltado. Os reféns passaram de moda. Dantes saíam a correr dos bancos, falavam com os olhos na câmara e um revólver na cabeça.
O que mais conta hoje são as desgraças individuais. Ouçam-nos, nos seus quinze minutos de fama e glória: ”A minha vida dava um filme” ou “Se eu lhe contasse tudo, vocês escrevia um livro”. Nada de males colectivos. Treze crianças felizmente salvas duma gruta da Tailândia dominam o mundo que esquece 800 à deriva no Mediterrâneo.
Desempregados são percentagens. Crianças africanas a chuparem tetas vazias não interessam nem ao menino Jesus. Um menino morto vale mais do que um orfanato despedaçado.
Uma lágrima furtiva vale mais do que um rio poluído. Já alguém viu o buraco do ozono? Quem paga a Amnistia Internacional? E o Greenpeace?
A TV mente mas a História também. A diferença reside na velocidade de sedimentação.
Para um escaravelho, uma bola de excrementos é o seu mundo. Quando se movimenta arrasta-a consigo levando todo o seu mundo. Para o escaravelho não existem África, guerras, meninos, árvores de Natal, tanques de guerra nem órgãos de Estaline.
Publicado no Minho Digital
Etiquetas: JL
2 Comments:
Isto, mais que um texto é uma «radiografia».
De nós.
Irremediavelmente.
O positivo é que haja quem seja capaz de o dizer com clareza. Mesmo que com pouca utilidade.
Por questões de higiene e assumpção.
Algumas vezes,penso como será escrita história contemporânea ...Serã baseada em factos concretos e profundamente analisados ou será a dullterada,pelas notícias levianas e superficiais,que sedimentam tão rapidamente,que transformam a mentira em verdade,o virtual em realidade...E,depois,tenho a sensação,que cada vez há mais escaravelhos Espero,não venha aí alguma infestação
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