27.8.20

O garoto rural e a cidade (minicrónica)

 Por C. B. Esperança

Até aos 10 anos, com memória desde os 4, não me recordo de casas de banho. Conhecia a retrete de madeira, com buraco para a corte dos animais ou para a pocilga. Julgava que a retrete em louça, ignorava o termo sanita, fosse exclusiva dos comboios e estações da CP.

Havia naturalmente grandes banheiras de zinco, em casas de gente rica, que, depois dos banhos, eram encostadas à parede até novas abluções com água aquecida em caldeiros suspensos sobre a lareira. Era assim no Cume, a 10 km da Guarda, onde a minha mãe dava aulas, e na Miuzela do Coa, onde os avós maternos me mimavam nas férias.

Nessas aldeias não havia água canalizada, saneamento, eletricidade ou telefone; na Miuzela, nem água potável. Para beber, ia-se buscá-la à horta do Vale e à do Espadanal, em cântaros de lata, nas cangalhas da burra.

Quando entrei no liceu, tinha o pai em Bragança à espera de uma vaga na categoria que o tinha desterrado. Em outubro fiquei numa casa sem saneamento, de gente amiga, logo a seguir ao Bonfim, a caminho do matadouro municipal.

Quando o meu pai chegou, antes de arrendar casa, hospedámo-nos durante alguns meses na pensão Madeira, da D. Bernardina, numa transversal à R.do Comércio. Tive um trato especial, com lanche, e um copo de leite e pãezinhos com manteiga, antes de me deitar.

No primeiro dia, fui do quarto que partilhava com o meu pai à casa de banho. Admirei a banheira, bacia, bidé e sanita, tudo louça fixa que dava serventia a vários quartos. A curiosidade fixou-me na corrente metálica suspensa, a terminar num pedaço de louça de forma cilíndrica. Ocorreu-me puxá-la e assustei-me com o barulho da descarga de água na sanita, imparável, a sugerir o Dilúvio Universal da imagem do catecismo. Aos gritos, paizinho, paizinho, a recear o perigo e o castigo, surgiu o meu pai a sorrir, antes de me dar conta de que, o que julguei ser uma tragédia, era apenas a descarga do autoclismo.

Aprendi uma nova palavra e a funcionalidade do mecanismo. Afinal, aquele ruído não anunciava o fim do mundo que temi desencadear.

No quarto, nas mesinhas de cabeceira, mantinham-se os usuais penicos para as pressas, e na eventual ocupação da casa de banho por outros hóspedes.

Nas repartições públicas, havia os escarradores de porcelana para higiene brônquica dos funcionários, e ruidosos atos de pontaria que produziam repugnantes estalactites em direção ao prato que servia de suporte ao pé alto que os colocava a meio metro do chão.

Era a Guarda, em meados do século que, há duas décadas, se extinguiu.
  
Coimbra, 26 de agosto de 2020

Ponte Europa Sorumbático

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5 Comments:

Blogger José Batista said...

Grande crónica. A crónica de um país num certo tempo. Creio que Portugal inteiro era assim. Era assim nas casas de quem podia alguma coisa. Não chegava a ser assim nos casebres da maioria da população, onde a miséria e a fome ditavam vidas extraordinariamente difíceis.
Parabéns pelo texto.

27 de agosto de 2020 às 14:51  
Blogger opjj said...

Direi que passei pelo mesmo. Meu pai fazia a retrete (sanita) em madeira que estava instalada no palheiro. Tinha-mos o trabalho com uma forquilha de tapar com palha. Que mais tarde transformada em estrume servia para adubar as terras.
A minha aldeia já tem saneamento há alguns anos.
Recordo que numa rua havia uma casa de 1º andar e que a senhora ás tantas da noite despejava o penico do 1º andar (para a rua).

27 de agosto de 2020 às 15:56  
Blogger SLGS said...

Crónica realista do que foram esses tempos. Não só na Guarda ou em Bragança, era assim no País inteiro. Gostei e revivi.

27 de agosto de 2020 às 18:02  
Blogger 500 said...

Conheci toda essa realidade, em Trás-os-Montes.

27 de agosto de 2020 às 22:49  
Blogger Carlos Esperança said...

Obrigado a todos os que se interessaram pelo texto que publiquei, especialmente aos que quiseram deixar o seu comentário.

30 de agosto de 2020 às 15:41  

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