1.5.21

Grande Angular - História e política

Por António Barreto

Belo discurso o do Presidente da República. Na forma, no conteúdo e na oportunidade. Desejando fugir aos temas mais desconfortáveis, poderia ter escolhido uma ladainha republicana. Como outros fizeram antes. Em vez disso, adoptou um tema difícil e polémico. O uso da história e das ciências sociais e o abuso das academias e do jornalismo têm servido para fortalecer e dar aparência de seriedade a campanhas políticas. A partir de feridas ainda abertas na sociedade portuguesa (a ditadura, a guerra, a descolonização, o retorno de portugueses e a descendência luso-africana), o Presidente mostrou o seu sereno orgulho em toda a história do país, os seus lados bons e maus, as suas glórias e as suas misérias.

O Presidente fez bem em falar de tudo isto. Podia ter-se refugiado na língua de pedra que é hoje o esperanto dos políticos, mas, em vez disso, elegeu matéria muito difícil, que tem até alguma carga de actualidade. O uso e o abuso da história, a condenação do passado, a reinvenção do passado e o aviltamento da história de Portugal com preconceitos e intuitos políticos: estes temas são difíceis e sugerem quase sempre, quando não abordados com seriedade, a demagogia barata.

Acusado de ter agradado a toda a gente, criticado por aceitar tudo, o Presidente, na verdade, não fez o jeito a ninguém. Nem sequer condenou explicitamente os que abusam da história: limitou-se a ignorá-los. O que permitiu ao Presidente fazer uma coisa destas? Para além da inteligência própria, que nada explica, foi o facto de o Presidente não estar a lutar pelo poder. Já não está a lutar pelo poder. E não quer lutar pelo poder. O que teve um efeito útil: o de demonstrar que quem usa e abusa da história, com ideologia e demagogia, não faz mais do que lutar pelo poder. Alguma direita nacionalista, a extrema-direita por grosso, muita esquerda radical, uns socialistas órfãos, um sem número de anti-racistas profissionais e boa quantidade de minorias fizeram dos “vendedores de pátrias”, da guerra colonial, da descolonização e do racismo “sistémico” e “estrutural”, temas de mera luta política, na esperança de tocar a alma do povo, o coração dos eleitores e a cabeça dos seguidores. Eles não querem apenas usar a história, querem apoderar-se dela para ganhar o poder. Sabem que o poder se ganha com armas ou votos, mas também com cultura, símbolos e semântica. O Presidente Marcelo tem o poder, não precisa de usar a história, pode dar-se ao luxo de ensinar e fazer pedagogia democrática junto dos que inventam ou reinventam, dos que papagueiam a história das glórias passadas e dos que macaqueiam a história dos amanhãs que cantam!

este propósito, temas de grande actualidade são os da história do ponto de vista dos vencedores e a história do ponto de vista dos vencidos. O que está na moda, actualmente, é deixar de fazer a história do ponto de vista dos vencedores e passar a fazer história do ponto de vista dos vencidos. O que se faz também com outras expressões. Assim, teríamos que se faz ou deveria fazer e ensinar a história (e a sociologia, a psicologia, a geografia, a filosofia e a ciência política…), não mais do ponto de vista dos ricos, mas do ponto de vista do povo. Não mais do ponto de vista dos poderosos, mas do ponto de vista dos trabalhadores. Não mais dos brancos, dos cristãos, dos católicos e dos europeus, mas do ponto de vista dos negros, dos muçulmanos, dos árabes, dos índios, dos escravos…

História dos vencedores e história dos vencidos! Ambas são legítimas. Ambas são ofensivas da inteligência e da cultura. Ambas são detestáveis. Mas ambas são interessantes, não pelo que dizem, mas pelo que traduzem. São histórias que falam dos seus autores, de si próprios, das suas pretensas glórias, dos seus heróis, das suas vitórias e dos modos como gostariam que fosse a sociedade.

Bons manuais de história de Portugal, do tempo do Salazarismo, de história de Espanha, do Franquismo, de história da Itália, de Mussolini, da História Chinesa, de hoje, de história da URSS, do seu tempo, de história de Angola, do MPLA, de história de Cuba, dos últimos cinquenta anos… São excelentes testemunhos do que é falso, do que uns gostariam que fosse, do que alguns querem que outros acreditem que é…

A comparação entre histórias programáticas dos vencedores e dos vencidos e histórias feitas por espíritos que procuram a liberdade e buscam a verdade é reveladora. Por um lado, o catecismo citado, a cassete, o simplismo enganador, a miopia deliberada, o ocultismo e a ocultação… Por outro, um exercício de busca e procura, uma tentativa de interpretação, um jogo inteligente de factos e de probabilidades… 

A História dos vencedores é odiosa. Detestável. Já a conhecemos. A história dos vencidos, dos trabalhadores, dos escravos, dos negros, dos judeus, dos árabes e dos chineses é tão má quanto a dos brancos, dos vencedores, dos cristãos e dos ricos. Uns querem manter poderes e privilégios, outros querem conquistar poderes e privilégios. Estas novas tendências não pretendem democratizar o saber, a história ou o poder: querem conquistá-los! Ambas negam o valor do esforço de rigor para alcançar, gradualmente, passo a passo, uma história isenta que procura a verdade, uma história feita por quem nada tem a ganhar com o que faz, nada tem a justificar, nada tem a defender, a não ser rigor e isenção.

A história que tanto condenámos durante décadas, a história que defendia estruturas de poder, que justificava opressões, que transformava em glória o que era também sofrimento, a que criava triunfos que esqueciam as vítimas… Essa história, de que estamos fartos, está gradualmente a ser substituída pela História dos que querem conquistar e que não trará mais verdade ou mais rigor. Substituir a história laudatória dos poderosos pela história militante dos activistas é um recuo, uma degradação do espírito! Fazer história para promover valores de negritude é tão patético e negativo quanto fazer o mesmo para engrandecer valores da cristandade. Ou da livre empresa. Ou do comércio livre. Ou do comunismo. Fazer história para defender a Inquisição é tão estúpido quanto fazer história para valorizar a Sharia.

Tudo o que pretenda ser história ou qualquer outra ciência social e que não se traduza num paciente e incansável esforço de procura da verdade, uma jornada sem repouso para compreender, é um passo atrás na civilização. Tudo o resto, o ponto de vista do vencido, a desconstrução da narrativa, a alternativa do submisso, a descolonização da história, a recriação do dependente e a afirmação do sem poder é falsidade de charlatão. É burlesco e é embuste.

Público, 1.5.2021

 

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1 Comments:

Blogger José Batista said...

Parece-me este artigo muito bem. Parabéns ao autor.

2 de maio de 2021 às 18:13  

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