4.11.21

A Procissão da Senhora da Conceição

 Por C. B. Esperança

Para animar a fé e variar a liturgia eram frequentes as festas canónicas que esgotavam os ovos, o açúcar e a capacidade de endividamento na mercearia da aldeia.

A missa iniciava as festividades e prolongava-se com rituais, padres paramentados a rigor, vindos das paróquias vizinhas, e o sermão de um outro, contratado para enaltecer a santa e avivar a fé. O pregador subia ao púlpito e distinguia-se pela desenvoltura com que se exprimia, tanto mais apreciado quanto menos percebido, podendo confundir as virtudes e trocar os santos sem beliscar a fé ou pôr em risco os honorários.

Depois da missa, a procissão percorria as ruas da aldeia com uma ou outra colcha nas janelas e garridas mantas de farrapos, que era pobre a gente e a intenção é que salvava a alma. 

À frente iam os pendões, empunhados por braços possantes que contrariavam o vento, seguidos de bandeiras com imagens pias e anjinhos, apeados, de asas derreadas. A seguir viajavam alinhados os andores do Sagrado Coração de Jesus e de alguns santos que aliviavam o mofo e o abandono na sacristia. Por último, vinha a estrela da companhia, a Senhora da Conceição, de virtude comprovada e ignorados milagres.

Os padres viajavam sob o pálio, conduzindo o arcipreste a custódia que exibia a hóstia consagrada, com acólitos a empunhar as varas. 

Em meados do século passado os cruzados gozavam ainda a estima de quem prevenia a salvação da alma e desconhecia a história das guerras religiosas. Assim, ladeando os andores, exultavam os garotos, meninos com uma faixa onde, a vermelho, se destacava a cruz, e as meninas com uma touca que lhes escondia os cabelos e exibia uma cruz igual. 

Depois dos padres e dos mordomos, orgulhosos dentro das opas, viajavam pelas ruas enlameadas as Irmandades. As Irmãs de Maria traziam o pescoço enfaixado com fitas azuis. Seguia-se a Irmandade do Sagrado Coração de Jesus com fitas vermelhas e, finalmente, as Almas do Purgatório com fitas roxas atrás de um estandarte que as anunciava, não fosse o diabo tomá-las como suas.

A cobrir a retaguarda a banda da Parada atacava música sacra enquanto os foguetes estalejavam no ar. A passo lento, se o tempo convidava, ou mais apressados, se a chuva fustigava, os crentes regressavam à igreja com deserções antecipadas a caminho de casa, onde as vitualhas aguardavam. 

Eram assim as procissões da minha infância percorrendo as ruas tortuosas da aldeia e os retos caminhos da fé.

Jornal do Fundão, 12-10-2006 e Pedras Soltas (Ed. 2006) 

Ponte Europa Sorumbático


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1 Comments:

Blogger 500 said...

Conheço este filme, bem esgalhado.

4 de novembro de 2021 às 09:27  

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