21.10.21

À Libânia (meretriz e filantropa) – Crónica --- Homenagem de três gerações de estudantes...

Por C. B. Esperança

Libânia (Libaninha). Não precisava de apelidos para ser referenciada. Continuam desnecessários para ser recordada.

No seu peito nunca brilhou uma comenda, e a ele se aconchegaram muitas inseguranças em véspera de exames, muitas ansiedades a preceder esponsais, muitas inquietações à procura do primeiro emprego.

O corpo não teve a moldá-lo um escultor que o imortalizasse em bronze, mas teve milhares de corpos que, em êxtase, o ajudaram a modelar.

Três gerações de estudantes aprenderam nela a inutilidade do pecado solitário. Foi, por assim dizer, a primeira educadora sexual. Sem diploma.

Teve mais matrículas do que o mais inveterado dos cábulas. E não chumbou por faltas, não lhe minguou a competência, nem se furtou às chamadas.

Não sendo culta foi uma mulher sábia. Não pertencendo a instituições de beneficência foi solidária. Foi tolerante, generosa e boa.

Pela sua casa passaram quase todas as profissões da cidade em busca dos préstimos da sua. Nivelou no tálamo as diferenças sociais que uma cidade beata e hipócrita fomentava.

Os estudantes foram a sua paixão. O seu consolo e a sua ruína. E a memória honesta que a recorda.

Mudou-se para Lisboa quando lhe fecharam a casa. Ali encontrou muitos dos seus estudantes queridos. Alguns haviam de virar-lhe  as costas, senhores que a posição estragou, crápulas que o poder corrompeu. Mas a maior parte permaneceu fiel. Sem falsos pudores, sem atos de contrição, sem penitências.

Homenagear a Libânia, hoje, é um ato de humor e de amor. E um gesto de cultura. Trata-se de um manifesto contra a hipocrisia, duma vingança póstuma em defesa de quem foi vítima das aparências, dum libelo contra os guardiões da moral importada duma qualquer vulgata sem que, a nível pessoal, com ela se importem.

A Libânia era o desprendimento em pessoa. Parecia desprezar o óbolo que os mais endinheirados lhe deixavam, tanto quanto a remuneração do trabalho que efetuava.

Reagindo contra uma cultura que persegue o sucesso e o individualismo, contra uma postura que incensa o poder e o dinheiro, contra uma tradição que exalta a castidade e a abstinência, prestamos à Libânia a homenagem de quem a recorda com saudade e se não envergonha dos afetos que perduraram e percorrem as nossas vidas.

A vida de puta foi o ónus que a puta da vida a obrigou a pagar. A generosidade, a simpatia e a bondade foram as excelsas virtudes que a exornaram e a tornaram credora da homenagem que agora aqui lhe tributamos.

Com este ato ficamos mais aliviados de uma dívida que durante a vida nos perseguiu. E exorcizamos os demónios da hipocrisia.

Tibi gratias, Libânia!

Coimbra, Restaurante Neptuno, 26-05-2000 – (Jantar de antigos estudantes da Guarda)

Publicado: «Pedras Soltas», pág. 191 e «Guarda Formosa na Primeira Metade do Século XX», pág. 403

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