Grande Angular - Desperdícios
Por António Barreto
Os governantes pareciam ter tudo o que era necessário para vencer. Uma maioria parlamentar obtida com mérito, esforço, a sorte dos deuses e a fraqueza dos adversários. Um Presidente da República desejoso de colaborar. Capacidade para escolher os melhores ministros e outros dirigentes. Uma liberdade de movimentos rara na vida política. Uma coesão partidária pouco frequente, quanto mais não fosse por necessidade. O afastamento definitivo de Sócrates e a reabilitação ou o branqueamento de todos os seus mais íntimos colaboradores. Uma oposição de direita insuficiente, trapalhona e dividida. Uma oposição de esquerda agonizante, sem escrúpulos, ácida e em vias de extinção. Uma sociedade civil fraca, expectante, pronta a colaborar e à espera de receber benefícios. Uma população cansada de dois anos de pandemia e, por isso mesmo, disposta a recomeçar a viver. Prestígio nos círculos europeus e internacionais. Fundos europeus em montantes nunca vistos antes e como nunca mais se voltará a ver. Sinais evidentes de retoma do turismo, sector absolutamente indispensável para a economia nacional.
Apesar da pandemia e da gravíssima crise de incompetência e má gestão da saúde pública, mau grado a guerra da Ucrânia, o futuro político do governo parecia sorrir. Eram róseas as expectativas dos socialistas. A população olhava para esta situação com benevolência, na esperança de ver resolvidos alguns dos seus mais prementes problemas. Poucas semanas bastaram para que o optimismo se esfumasse e os espíritos azedassem. Regressaram a dúvida e o medo, graças a episódios políticos inéditos. O fio dos acontecimentos parece uma ficção. Tudo começou com decisões sem fundamento técnico nem força política. Tivemos depois a mentira pública e a notória traição. Chegámos às desculpas que o não são e ao perdão sem justa causa. Passámos pela revogação de um despacho e pela desautorização de um ministro diante de toda a gente, tudo isto terminando em pazes covardes. É inimaginável o desperdício de recursos, de energias, de confiança e de meios a que assistimos.
As notícias e os comentários preferiram até agora a coreografia e a leitura dos astros. O sentido invisível ou o implícito de cada gesto é analisado, frequentemente inventado, quase sempre imaginado. Muitos aceitam com facilidade os termos utilizados pelos figurantes: erro de coordenação, falha de articulação, lapso de procedimento e figuras de estilo semelhantes. Verdade é que não parece ter sido nada disso. Trata-se pura e simplesmente de gestos deliberados e intencionais, com propósito e objectivo. Tanto os do ministro e dos seus colaboradores, como os do Primeiro-ministro. E é como tal que devem ser tratados, não como meros acidentes de percurso ou pequenas falhas de comunicação.
Não foi uma falha. Não foi um erro. Foi um acto deliberado, com intenção política e pessoal. Foi um acto que revela sofreguidão, vaidade, ambição e deslealdade. E sobretudo exibe incompetência técnica e política. O ministro pediu desculpa por um erro e uma falha. Não cometeu nenhum. Foi premeditado. É esta a sua maneira de ser. É esta a sua ambição. É esta a sua incompetência.
Nunca antes na história um ministro demonstrou, consciente e deliberadamente, tão flagrante e tão pérfido abuso de poder. Nunca antes na história se tinha assistido a uma tão vexatória desautorização de um ministro, levada a cabo pelo Primeiro-ministro, com revogação pública de ordens e despachos legais. Nunca antes um ministro, gaiato esquerdista seja ele, pôs em causa o sistema de governo desta insana maneira.
Como é possível que se aceite como boa a desculpa de que se trata de erro de comunicação? Como é possível que um gesto tão grave como este não seja imediatamente punido ou castigado como deve ser? Só é possível imaginar que o Primeiro-ministro aceite conviver com a traição e com um falso beato se ele próprio tem interesse nisso e percebe que tem responsabilidades nesta série desastrada de acontecimentos. A pusilanimidade do Primeiro-ministro é tão grave quanto a deslealdade voraz do ministro.
Toda a gente perdeu. Todos estão hoje mais frágeis do que há duas semanas: o ministro perpetrador, o Primeiro-ministro, os restantes ministros e o Presidente da República. Também estão hoje mais fracas e vulneráveis a TAP dos aviões, a ANA dos aeroportos, a CP dos caminhos de ferro, as Infra-estruturas de Portugal, os portos e as Forças Aramadas. Sem falar na habitação, desguarnecida de inteligência e confiança. Raramente na história recente se estragou e desperdiçou tanto em tão pouco tempo!
O aeroporto de Lisboa é talvez o mais importante projecto de investimentos do Estado português das últimas e das próximas décadas. Vai condicionar o desenvolvimento da capital, da maior área metropolitana, da região e do país por muitos anos. Representa um dos maiores esforços jamais feitos em Portugal para conjugar empresas e administrações, indústrias e comércios, empresas de serviços e de transportes, projectistas e arquitectos, construtores e empreiteiros. O desenvolvimento rodoviário, de caminho de ferro, de mercadorias, de ligação dos portos marítimos ao país e à Europa, tudo isso está dependente do aeroporto de Lisboa, das suas infra-estruturas e dos seus acessos. E o que não está já dependente será profundamente influenciado pelas soluções adoptadas.
Pela história e pelos antecedentes, um projecto destes não pode nem deve ser entregue a gente incompetente, a ministros inconstantes, a governos impotentes, a gente voraz, a políticos interesseiros e a pessoal moralmente débil. Parece ser o que tem acontecido. O aeroporto de Lisboa, discutido e estudado há quase meio século, encontra-se na sua sétima ou oitava solução. As escolhas, decisivas e definitivas todas elas, contraditórias e incompatíveis, foram quase todas da autoria de socialistas. Cinco foram as localizações, oito as soluções. Tudo isto só é possível porque se eliminou a capacidade técnica e científica do Estado.
Um ministro decidiu exibir poder e ambição, vontade de marcar a história e capacidade de decisão. Mas faltava-lhe tudo, ciência e sabedoria, experiência e isenção, competência e certeza. Ao abusar do seu poder, enfraqueceu o Estado português, menos capaz hoje de tomar a decisão acertada, sem ficar dependente de grupos e de interesses. O que parece ser um gesto estouvado de um ministro presunçoso acaba por revelar toda a amplitude de um governo menor e de um Estado fraco.
Público, 2.7.2022
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