26.11.22

Grande Angular - E tudo mudou…

Por António Barreto
De vez em quando, em cada dez anos, chegam números novos. São os resultados do Censo da População. Com imprecisão, muitos defeitos e ausências, falta de ilegais ou incapacidade de contar os emigrantes que regressam, os que se vão e os temporários. Na maior parte dos casos, as falhas são da vida, não dos técnicos. Sabe-se isso tudo. Mas é o melhor que temos. E o grau de aproximação da realidade é melhor do que muitos dizem.

 

É nesta altura que os governos, os partidos, os sindicatos, os comentadores e os académicos sacodem as cabeças, prepararam as gargantas e afiam os lápis. Quase a seguir, os cépticos vituperam. Os governantes gabam-se, denunciam os governos anteriores, fazem promessas demagógicas, anunciam que está em preparação mais um programa de reformas profundas, garantem que tudo o que correu bem é graças a eles e o que vai mal é por causa do inimigo, isto é, do governo anterior do outro partido. O trivial.

 

É triste e infeliz, mas é bom que assim seja. Ao menos, dá-nos um pouco de luz para olhar para a realidade. Ganhamos alguma certeza dos factos de que falamos todos os dias, geralmente sem dados, muitas vezes com palpites. As realidades estatísticas que começam com “consta”, “diz-se”, “parece” e “acho” são geralmente produto de miopia ou mentira deliberada. Com os Censos, aproximamo-nos da vida.

 

Olhando para o que temos diante de nós, já podemos ir tomando algumas notas. A população portuguesa está a diminuir. Eis o primeiro e mais importante facto. De igual ou parecido, só na década de 1960, quando se assistiu ao primeiro grande êxodo migratório. O Censo então realizado foi censurado até pelo Presidente da República de então (Américo Tomás), de tal maneira foi considerado atentatório da dignidade nacional. Um país como o nosso não podia admitir que a população emigrasse e diminuísse! Só se o seu povo fosse infeliz e não tivesse esperança nem oportunidades, o que estava fora de questão. Chegou a proibir-se a publicação integral dos resultados do Censo.

 

Voltando ao presente. O número de residentes (portugueses e estrangeiros legais) diminuiu de cerca de 220.000, passando a população total de 10.560.000 para 10.340.000. Isto, apesar do regresso muito importante de antigos emigrantes: cerca de 430.000 voltaram a Portugal nos últimos dez anos. A quebra de população fica a dever-se, como é natural, à baixa de natalidade e à emigração. Nem sequer a muito forte imigração de estrangeiros (quase 400.000 em dez anos) bastou para compensar as perdas demográficas.

 

A emigração para o estrangeiro continua em patamares muito elevados, a fazer pensar nos anos de 1960. Pior: o número de emigrantes por cada 1.000 habitantes é, na última década, superior ao registado na década de 1960. É talvez este o maior falhanço da economia, da sociedade, da política e das políticas públicas das últimas décadas.

 

De notar ainda o aumento da imigração. O número de imigrantes entrados por ano varia muito, conforme o ano, entre 15.000 e 70.000 nos últimos vinte anos. A parte da população estrangeira legal é um dos factos mais salientes. Os estrangeiros residentes e legais serão hoje cerca de 700.000, o número mais elevado da história. Estaremos perto do 7% do total da população residente, sem contar os ilegais (são muitos, mas ninguém sabe quantos…). Também não se incluiu a população de origem estrangeira naturalizada. Até porque já se trata de portugueses.

 

Entre os imigrantes por nacionalidade, vêm à cabeça os Brasileiros (200.000). Por continente de origem, o maior “stock” é o dos Europeus: são mais de 255.000. Contam-se os Ingleses (41.000), Romenos (30.000), Italianos (30.000), Ucranianos (28.000), Franceses (26.000), Espanhóis, (18.000), Moldavos (5.000) e outros. Africanos serão perto de 100.000, com Cabo Verde (35.000), Angola (25.000) e Guiné (20.000) nos principais lugares. Os Asiáticos serão igualmente cerca de 100.000. Os primeiros lugares pertencem à Índia (30.000), China (23.000) e Nepal (22.000).

 

Outra realidade notável, resultado da quebra de natalidade, da emigração e do aumento da esperança de vida, consiste no envelhecimento da população. Para muitos uma tragédia, para outros uma alegria. Vive-se mais, vive-se melhor. Há mais saúde. Há melhor alimentação e mais água potável. Há mais conforto. O problema é que, como se sabe, uma população envelhecida perde saúde, energia, inovação, esperança, ânimo, produção, criatividade, impostos e receitas. E gasta mais em saúde, segurança, pensões e apoios. A equação, nestes termos, é desastrosa. E exige uma economia mais saudável e pujante.

 

Convém também olhar para outros números, os da economia e do produto (PIB), dados que chegam da Comissão Europeia. Em poucas palavras, Portugal ocupava há vinte anos o 15º lugar na classificação dos países segundo o PIB por habitante (em poder de compra). Vinte anos depois, ocupa o 20º lugar. Quer dizer, está a perder em termos comparativos. Noutras palavras: em vinte anos, Portugal cresceu muito, desenvolveu-se e melhorou. Mas os outros também. Mas os outros ainda mais. Mas os outros mais depressa. E melhor.

 

O que há de muito curioso e motivo de reflexão (para compreender, estudar as causas e avaliar as consequências) é a conjugação de várias tendências bem expressas. E aparentemente contraditórias. A população diminui. A emigração para o estrangeiro aumenta. O regresso de emigrantes portugueses aumenta. A imigração de estrangeiros aumenta. Trata-se de mistura explosiva. Perde-se a ideia de uma política de migrações ou de uma linha de incentivos. Percebe-se que não existe uma visão ou uma ideia. O país e as autoridades olham para o que acontece e limitam-se a deixar acontecer. Os portugueses emigram à procura de melhores condições, mais oportunidades e melhores salários? Pois seja. A economia tem uma enorme falta de mão de obra? Venham os imigrantes. Há uma imensa procura ilegal de mão de obra clandestina? Deixe-se correr. Mantem-se e persiste a política e o modelo de salários baixos? É o possível. Aumenta o trabalho clandestino. Desenvolvem-se as redes de bandidos traficantes de mão de obra. Surgem cada vez mais os empregadores de imigrantes legais. Aumenta a população estrangeira residente não legalizada. Multiplicam-se os alojamentos miseráveis e clandestinos. Crescem as tensões entre comunidades nacionais e estrangeiras. Proliferam formas de marginalidade, da criminalidade à quase escravatura, passando pelo tráfico de droga e pela prostituição. Tudo isto perante a inexistência de uma qualquer vontade de controlar (o possível…) os movimentos migratórios. Deixar correr é sempre a pior das políticas.

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Público, 26.11.2022

 

 

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1 Comments:

Blogger Bmonteiro said...

«Os governantes gabam-se, denunciam os governos anteriores, fazem promessas demagógicas, anunciam que está em preparação mais um programa de reformas profundas»
Isto é, sem um fio condutor comum, a cada legislatura, recomeçar tudo como no mito de Sísifo. Como é que isto aguenta, tal é o paradoxo da paróquia. Hoje, como há 50 anos.
O QUINTO IMPÉRIO
Uma das particularidades portuguesas: o gosto da pequena polícia, a que mantém relações sentimentais com o povo. A sua arte de bisbilhotar, de procurar por trás, de inventar razões e causas, a um tempo teima de funcionário e regressão à inteligência infantil. Ou bem que os portugueses não fazem nada, ou bem que vão até ao último pormenor e, chegados aí, largam tudo como de costume.
Cada cinquenta anos, o país sonha ser a primeira sociedade liberal avançada do mundo. Cada cinquenta anos, o libertário volta à superfície. Procura-se então um banqueiro ou um professor de economia capaz de casar meio século de bordel com O Espírito das Leis.
Sem endereços e todos com o mesmo nome, obedecendo a dois ou três pequenos princípios, entre os quais o de inventarem títulos
Dominique de Roux (1977, Paris), com quem me cruzei no norte de Moçambique, 1971/72.

26 de novembro de 2022 às 21:58  

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