19.11.22

Grande Angular - O pecado da complacência

Por António Barreto


O maior inimigo da tolerância é a complacência. Admitir o inadmissível, desculpar o indesculpável. Arranjar sempre uma justificação para o que a não tem. Perdoar por causa das origens sociais, da etnia, da idade, do género ou do partido. Não ver a realidade por causa do alegado interesse nacional. Esquecer por sentimento de culpa. Confundir a bondade com a passividade. À covardia, chamar coragem. Admitir que o interesse e o poder justificam e desculpam tudo. E deixar que a permissividade se transforme em cumplicidade.

 

Até quando nos deixaremos inexoravelmente tentar e convencer pelos piores males do mundo, na esperança de disso retirarmos prazer e vantagens, ou de por essa via sermos capazes de conquistar os bárbaros deste planeta para os benefícios da civilização? Até quando seremos cegos e surdos e não percebemos que ceder aos antidemocratas, aos assassinos, aos terroristas, aos intolerantes e aos traficantes não é meio caminho andado para a sua conversão, mas sim meio caminho para a nossa abdicação e a nossa capitulação?

 

Até quando poderemos pensar que uma aliança política com um partido de extrema-direita não democrático ou antidemocrático permitirá que esse partido se aproxime gradual ou rapidamente da democracia e que essa será a melhor maneira de evitar derivas populistas? Até onde se poderá pensar que uma aliança política de partidos democráticos com partidos de extrema-esquerda não democráticos fará com que se assegure a estabilidade e levará esses partidos a converter-se à democracia e a deixar-se convencer pelas bondades deste regime? Até quando se poderá permitir que se encarem ou façam alianças com o diabo, na esperança de o convencer a renunciar à sua vocação e de o seduzir pela superioridade da virtude?

 

Até quando seremos tolerantes, bondosos e complacentes para com os criminosos, bandidos, terroristas e fanáticos, desde que sejam de outras etnias, de outras crenças, de outra cor, de outra religião e de outra condição económica? Até onde seremos capazes de desculpar o crime de roubo, o tráfico de mulheres, o contrabando de armas, a violência doméstica, o assédio sexual e até o assassinato, desde que os perpetradores sejam pobres, imigrantes, desempregados, drogados ou refugiados? Até quando estaremos sempre prontos a tolerar os muito ricos, permitindo que eles comprem a sua inocência, paguem pela sua paz, cobrem pela sua honestidade, bloqueiem a justiça, influenciem partidos políticos e subornem a Administração Pública?

 

Até quando estaremos dispostos a tolerar e fechar os olhos aos comportamentos aberrantes e selvagens por parte daqueles que conseguem invocar a história e o facto de serem sucessores dos descendentes das antigas vítimas, de serem filhos de escravos, netos de colonizados, bisnetos de prisioneiros e tetranetos de conquistados? Até quando aceitaremos fechar os olhos à opressão das mulheres, à violência exercida sobre crianças, às liturgias de amputação, aos rituais de mutilação, à aplicação das penas de Talião e à tortura imposta aos humanos, desde que os seus autores sejam de outras religiões, de antigos povos colonizados, escravizados, racializados, dominados ou conquistados?

 

Até quando deixaremos de ser tolerantes com os ricos, os muito ricos, os produtores de petróleo ou gás, os senhores da banca e das finanças, os proprietários de matérias-primas, os governantes de nações onde o salário miserável é a regra, os ditadores de países que não reconhecem as regras do direito, muito menos os direitos humanos? Até onde poderemos colaborar com os facínoras deste mundo com um sorriso na cara e os braços abertos fingindo ignorar o que nos deveria separar? Até quando não seremos capazes de traçar uma fronteira nítida e rígida entre as necessidades realistas de coexistência Internacional e a colaboração cordial e amistosa? Os salários e o mercado chineses são suficientes para esquecer? O petróleo árabe basta para fechar os olhos? O gás russo chega para olhar para o lado? O dinheiro de qualquer origem é suficiente para comprar a nossa moral, a nossa honra, as nossas crenças e os nossos valores? A glória do futebol permite tudo?

 

Até onde deixaremos que a “ética republicana” se tenha transformado num manual de emprego privilegiado, num salmo para ajuste directo, numa regra para encomendas familiares e um tratado de recrutamento preferencial? Até quando deixaremos passar, sem pena nem condenação, as novas regras de comportamento político que perdoam a corrupção, aceitam o nepotismo, permitem o lenocínio, estimulam o compadrio e sustentam o favoritismo, desde que entre gente e famílias do mesmo partido e entre vencedores de eleições? Até quando estaremos dispostos a aceitar que a justiça atrase, adie, esqueça ou feche os olhos aos crimes e tráfico de influências no quadro das regras informais da democracia?

 

Até quando aceitaremos que os costumes do futebol e do dinheiro dominem os códigos jurídicos, as regras éticas e os costumes civilizados, a ponto de ser oficial e admitido que ambos, dinheiro e futebol, se regem pelas suas próprias leis, têm os seus usos e criam uma espécie de soberania que submete a civilização e o direito? Até onde nos dispomos a tolerar, admirar, copiar e respeitar as regras que impõem, no meio do futebol, os regimes alimentares e de bebidas, o modo de vestir, o aviltamento das mulheres e a violência sobre humanos, em favor do reconhecimento de ditaduras brutais e da mercantilização do desporto e dos desportistas? Até onde estaremos prontos a deixar que o dinheiro, a falsa crença religiosa, o petróleo, o investimento financeiro e a capacidade de corrupção sejam suficientes para estabelecer e normalizar as mais selvagens ditaduras que se possa imaginar?

 

Até quando continuaremos a tudo tolerar a quem tenha dinheiro e petróleo, armas e mercado, fábricas e salários baixos?  E tudo desculpar a quem atribua os seus crimes à pobreza, ao desemprego, às origens sociais, à escravatura e ao colonialismo? E tudo permitir a quem favoreça o partido, a seita, a família e a congregação? E a deixar que seja possível invadir escolas, ocupar universidades, conquistar ruas e impedir outros de trabalhar, desde que se escolham bem os argumentos, como o clima e a ecologia?

 

A abdicação e a complacência são o início da barbárie. 

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Público, 19.11.2022

 

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2 Comments:

Blogger A Nossa Travessa said...

Caríssimo Carlos

Depois dos três anos (ou pouco mais) de ausência por mor da recaída da bipolar + a Covid eis-me de volta e muito satisfeito por me encontrar de novo no nosso Sorumbático.

Hoje tenho de dizer "umas coisas" sobre o texto do meu grande Amigo António "transmontano" patrão duma Lei que ficou para a História do PREC.

Concordo, uma vez mais, com o artigo, ainda que haja diferenças de opini~~ao entre nós acerca de determinados pontos ideológicos; mas isso é que faz da Democracia a essência da Liberdade. É o fundamental. Por hoje é tudo. Alongar-me seria estulticia que nem o António, nem tu, nem todos os que nos seguem, nem principalmente o Sorumbático merecem.

Um abração do
Henrique

NB - Espero por ti e quiçá por um comentário na NOSSA TRAVESSA

20 de novembro de 2022 às 15:31  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Caríssimo,
Ainda bem que estás recuperado e de volta!
.
Os textos que queiras publicar, manda-mos em Word, sff.
Temos o C B Esperança às quintas, o Letria às sextas e o Barreto aos sábados.
Escolhe, pois, um dia diferente desses.
Abraço
C

20 de novembro de 2022 às 20:41  

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