Grande Angular - A crise e os remédios
Por António Barreto
Ninguém duvida de que vivemos uma das mais preocupantes crises das últimas décadas. Já não bastavam os problemas internacionais que nos ultrapassam. Os nossos próprios parecem pelo menos tão difíceis de resolver. A invasão da Ucrânia pelos Russos, seguida de um dos mais nefandos massacres que se pode imaginar, é suficiente para deixar o mundo perplexo. A nova tensão internacional, perigosa como poucas, vai durar muito, de mais. Mas é perante isso, as dificuldades e os imprevistos, que a competência, a força e a inteligência são necessárias. O Governo invoca aqueles factores para desculpar as suas fraquezas, mas é exactamente o contrário de que se trata: é por causa dos perigos e das ameaças que exigimos acção do Governo.
Os recentes episódios das demissões de governantes, em situação de crise moral, de incompetência, de sordidez ou ambição pessoal, ilustram as carências do Governo e da autoridade democrática. A situação caótica que se vive na educação e na saúde mostram a enormidade das insuficiências. O muito actual episódio das Jornadas da Juventude, verdadeiramente indecoroso pela falta de seriedade e de competência, revela a incapacidade das instâncias de poder democrático para tomar conta do que devem e assumir as suas responsabilidades. O problema não é evidentemente o dos casos, como gosta de dizer o Primeiro Ministro. O problema já é de desnorte.
É verdade que parece haver algum crescimento económico. Pouco. Menos do que outros. Não tanto quanto precisaríamos. Mas é alguma coisa. Não sabemos se a política do governo teve influência ou se é simplesmente a economia e a empresa. Mas aceitemos que o Governo não é culpado de ser um obstáculo às forças económicas.
Também parece certo que houve melhoramento nas condições da pobreza e algum progresso nas acções de redistribuição, factos a que não será estranha a acção do Governo. Mas, também aqui, sabemos nós e o Governo sabe que tal não é suficiente e que há muito mais a fazer, designadamente investimento e emprego.
Se há progressos, poucos, há retrocessos, bastantes, e deficiências, muitas. O SNS desorganizado e sem médicos é revoltante! Maternidades fechadas de vez em quando é absurdo. Falta persistente de enfermeiros é incompreensível. Dezenas de milhares de alunos sem um ou mais professores é escandaloso. Uma ou duas dezenas de anos de espera para julgar um arguido poderoso é imoral. O desastre reinou nas infra-estruturas, com relevo para o aeroporto e a TAP. A desorientação relativamente à imigração ilegal e aos trabalhadores clandestinos deixa prever conflitos a breve prazo. A persistência da emigração de portugueses para o estrangeiro, com valores próximos dos da década de 1960, situação que não mereceu atenção deste governo, é talvez o mais chocante sinal de incapacidade política e económica.
Não é por causa da crise internacional que o momento é de alerta. É por causa das crises nacionais que começa a fazer-se tarde. Do primeiro ministro, do seu governo e do seu partido exige-se uma reflexão a que parece recusarem-se. Podem ou não continuar? São capazes de mudar o suficiente para recuperar força e energia? Estão aptos a recorrer a novas forças e novas ideias capazes de mudar o rumo desgraçado que levamos? Conseguirão abandonar o estilo palavroso e propagandístico, tão estéril e prejudicial? Deixarão de acreditar nas estratégias teóricas e sistémicas tão do seu gosto para se ocupar de questões reais, sociais, políticas e económicas, como quem trata de problemas e não como quem faz teses de mestrado? Perceberão que grande parte da crise na Justiça se deve à sua inoperância e à sua covardia? Poderão compreender que a crise da educação, tão prejudicial, se deve em grande parte à sua demagogia? Terão entendido que a enorme crise no SNS é o resultado da sua incapacidade de gestão e da sua obsessão ideológica? Terão uma vez sentido que a sua vontade de esbater algumas desigualdades, assim como de aliviar tanta gente da pobreza, são insuficientes e que, sem emprego e sem salários decentes, os seus esforços ficam-se pela compaixão?
É uma velha regra da política marialva: aguentar! Resistir! Em certas ocasiões, resulta. Passadas as tempestades, o mundo recupera as suas cores, as sondagens voltam a subir. A maior parte das vezes, não resulta. Aguenta-se até perder definitivamente. Quantos derrotados persistiram no erro, acreditaram que a sorte voltaria um dia, confiaram na inteligência dos seus colaboradores e julgaram que poderiam tudo recomeçar, sem danos nem prejuízos, sem mortos nem feridos?
Esta atitude de “esperar que passe” e julgar que se pode recuperar com as mesmas pessoas, as mesmas ideias e o mesmo estilo, tem que se lhe diga. Prejudica o país. Causa danos irreversíveis ao partido. Pode ser fatal ao Primeiro ministro e ao governo.
Se assim for, mudar de pessoas, de ideias e de estilo parece imperioso. Não deve ser muito difícil. O Partido Socialista já nos habituou a mostrar que tem lá de tudo, bom e mau, inteligente e estúpido, de esquerda e de direita, incompetente e capaz, liberal e autoritário, honesto e corrupto. Há por onde escolher. Ao Primeiro ministro que, por enquanto, tem os votos, de decidir o que guarda e o que deita fora. É a ele que compete, em primeira linha, ver se tem capacidades, estimar o que deve mudar, medir a consistência da sua maioria…. É a ele e só ele que compete manter-se, remodelar, demitir-se, formar novo governo ou pedir eleições. Não é aos chefes da oposição que cabe fazer tal. Não é ao Presidente da República que compete fazer essa avaliação e tomar essa decisão. Pode acontecer. Como já foi o caso com Soares, Sampaio e Cavaco. Não sendo ilegal, esse gesto é nefasto e fere a democracia. É um engano e, como tal, mal compreendido pelo eleitorado. Pode o Presidente da República estar cansado de tanta inoperância. Podem os chefes das oposições estar com pressa e querer aproveitar o falhanço do governo para ampliar a crise. Podem os parceiros sociais, os intelectuais e os artistas considerar que um novo governo lhes dará uma vantagem. Pode tudo isso ser verdade. Mas nada disso recomenda uma intervenção abrupta, um despedimento forçado e umas eleições fora do calendário.
A verdade é que, na melhor normalidade política e democrática, no bom sentido da civilização parlamentar e no quadro dos bons hábitos institucionais, é ao Governo que compete escolher a remodelação, a demissão e a eleição. E, em conformidade, solicitar ao Presidente os procedimentos constitucionais adequados. Outra qualquer via só acrescentará à crise.
.
Público, 28.1.2023
Etiquetas: AMB
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home