23.1.23

Uma garrafa na praia* Quando os pombos levam na anilha

Por Antunes Ferreira

Era uma garrafa. E trazia algo dentro dela; tinha sido arrojada pelas últimas ondas e estava meio enterrada na areia húmida calcada por inúmeros pés de tamanhos diferentes nus e ou calçados de sandálias, sapatos, havaianas ou solas de pneus afeiçoadas a extremidades humanas, bem como patas de animais, sobretudo de gaivotas. Sebastião agachou-se e pegou nela. Vidro verde escuro próprio de vinho tinto. O oceano levara-lhe o rótulo – se o tivera alguma vez. 

Outono tardio com frio bastante para usar samarra e boné de marinheiro com uma âncora bordada mas tudo muito gasto por via do uso prolongado. Sebastião José Matias de Carvalho, alcunhado O Marquês do Pombal não só pelo nome mas também porque era um columbófilo, filiado na Federação Portuguesa de Columbofilia não era um destacado elemento daqueles cujos resultados eram motivo de orgulho nacional a nível de pombos-correios.

Registavam-se um campeão olímpico (havia Jogos Olímpicos Columbófilos), vários segundos e terceiros lugares nessas competições e noutras como por exemplo as que englobavam as ibero-americanas de línguas românicas, outras intercontinentais e em todas a columbofilia portuguesa não deixava os seus créditos em mãos alheias.

Como estava desocupado (tinha sido despedido) Sebastião levara consigo o Press Release da Federação e    ia lendo que em Portugal são realizadas corridas de pombos entre Fevereiro e Junho de cada ano, sendo que nos restantes meses existem outras competições columbófilas, nomeadamente os dérbis. O número de pombos está estimado em 4,5 milhões!

A columbofilia é a uma modalidade desportiva relacionada a corrida entre pombos-correio. Os columbófilos (criadores de pombos-correio) potencializam as capacidades físicas e de orientação dessas aves para participação em campeonatos. Os animais desenvolvem velocidades máximas entre 87 km/h e 102 km/h em distâncias que podem chegar a mais de 1.200 quilómetros,

A prática está regulada oficialmente.  Nomeadamente pelo Lei 36767 de 26 de Fevereiro de 1948 (Lei de protecção ao pombo-correio): Determina que é necessário estar inscrito na Federação Portuguesa de Columbofilia para poder ter pombos-correio ou comprar anilhas oficiais e que o dever de quem encontrar um pombo-correio extraviado é comunicá-lo de imediato à Federação Portuguesa de Columbofilia, que tratará de identificar o proprietário a fim de se proceder à recuperação do pombo. Após a recepção da comunicação emitida pela Federação, o proprietário dispõe de 15 dias (corridos) para a efectiva recuperação do pombo. 

Mas, o que é, afinal esta ave tão admirada? O atual pombo-correio é o resultado de cruzamentos de algumas raças belgas e inglesas, efectuadas na segunda metade do século XIX. Esse padrão de pombo foi continuamente selecionado a fim de apurar duas características principais: a capacidade de orientação e um morfético atlético.

Por agora Sebastião guardou o boletim informativo, pegou na garrafa que aparentava ser muito velha e dirigiu-se a um bar restaurante que existia logo acima da praia e onde se encontravam apenas dois velhos clientes jogando gamão e um par, também da terceira idade, ocupado com o dominó. Mandou vir uma bica e um pastel de nata, ao que o patrão o aconselhou a optar pelos de feijão feitos pela mulher dele e acabados de sair do forno. Assim foi.

O lacre que tapava o gargalo da garrafa estava intacto, apenas um tanto amarelecido pelo sal do mar. O dono do estaminé, sôr Malaquias emprestou uma faca da cozinha para abrir o lacrado e poder-se extrair o conteúdo. Tratava-se dum papel, melhor dizendo uma mensagem em castelhano antigo datada de 17 de Marzo de 1756 oriunda de Montevideo e assinada por Don Fernando Cruces Carrasco.

Nela o autor relatava: “Estoy atrapado aquí en esta isla

por haber llamado hijo de puta al gobernador general de la provincia, que es verdad.

Pero la sentencia que me ha dado el tribunal es de por vida y aislada para siempre.

¡Mierda!

Por eso escribo este mensaje que arrojo al mar con la esperanza de que alguien lo lea y venga a salvarme. Espero y confío en Dios Nuestro Señor,”

Era o Outubro de 2021, distavam 265 anos entre a entrada da missiva na garrafa e a sua saída ali no Beira Mar do sôr Malaquias; não havia nada a fazer, a não ser acolher a proposta do proprietário: para comemorar o achado podíamos beber umas bejecas com uns nacos de salpicão de Freixo de Espada à Cinta que era a terra dele. Excelente.

E foi então que os temas se cruzaram. De Freixo era também natural o sacana que me despedira por causa dos pombos correio. E logo o valente Gustavo Malaquias: “Sei quem é o pássaro bisnau. É o engenheiro Artur Margaride, que dizem que é maricas…” E acrescentou: “Eu, pelo menos, não punha as mãos no fogo por ele; já na escola primária onde andámos juntos se falava…”

Sebastião percebeu. Sem qualquer intenção premeditada tinha perguntado no escritório, na frente do Margaride, se era verdade que os pombos correio levavam mensagens na anilha. Ao que o Silvestre da Tesouraria comentara com ar sardónico: “Na anilha? Tás a gozar com quem?” 

 

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