4.2.23

Grande Angular - A morte do Parlamento

Por António Barreto

A lei dita da Eutanásia não é a lei da Eutanásia. É, isso sim, a lei da Morte Medicamente Assistida, com duas hipóteses: uma, a do Suicídio Medicamente Assistido; outra, a da Eutanásia praticada, a pedido do doente, pelo Medico Assistente. Quer isto dizer que a Eutanásia não solicitada pelo doente, assim como qualquer outra forma de terminar a vida de alguém, sem pedido nem acção do doente, está excluída desta lei. Espera-se que para sempre.

 

A lei foi votada por partidos. Os que votaram a favor, os que se abstiveram e os que votaram contra foram sempre partidos. Com ou sem declaração de voto, com ou sem frases sopradas para jornalistas de conveniência à saída de uma reunião, não se conhecem pensamentos, decisões, deliberações, argumentos ou sentimentos individuais dos deputados. Sabe-se o que pretendem os partidos, mas, salvo raríssimas excepções, não se sabe o que querem os deputados. Cada um dos 230 pensa e diz o que o seu partido pensa e diz; acredita e vota no que o seu partido acredita e vota. São muito poucos os que entendem que os seus eleitores têm o direito de saber o que eles pensam e votam, não apenas os seus partidos. Como é sabido, votar livremente, de acordo com a sua consciência, pode ser, se for diferente do seu partido, um gesto muito perigoso para a carreira.

 

No trânsito entre São Bento e Belém, ida e volta, com paragem no Palácio Ratton, à Rua do Século e nos seus episódios, sérios uns, caricatos outros, esta lei revela mais um império partidário: no Tribunal Constitucional vota-se muito de acordo com os partidos de influência e de origem. Os jornais, solícitos e atentos, já publicam as estatísticas dos Juízes e dos seus votos de acordo com a distribuição partidária. O que, para um Tribunal Constitucional, é impensável e degradante. Mas é assim, infelizmente. É possível e por vezes interessante “classificar” os magistrados constitucionais, saber, por exemplo, os que são progressistas ou conservadores, crentes ou ateus, liberais ou reaccionários, defensores da regionalização ou centralistas. Isso é uma coisa. Que até pode variar e cruzar-se ou não com os partidos parlamentares. Mas não deveria estar garantido que, em geral, votam conforme os partidos que os designaram. 

 

Poderia pensar-se que estas fortalezas parlamentares, feitas de tropas obedientes, compostas por deputados que fazem o possível por não se distinguir e que abdicam da sua individualidade, são condições de estabilidade e de certeza política. Paradoxalmente, não é verdade. Apesar de disciplinados e anónimos, os deputados são sistematicamente tentados pelas iniciativas marginais e pelas invenções “societais” ou “civilizacionais” com que os activistas (nova e estranha categoria política…) os distraem ou tentam convencer.

Regresso a São Bento, onde, o Parlamento está a ser comandado pelas suas margens. À direita, o CHEGA condiciona o PSD, impõe-lhe regras e reflexos, sugere movimentos, lidera a sua respiração e estimula os seus reflexos. O PSD, com horroroso pavor do CHEGA, tenta fazer o seu serviço, com receio do extinto CDS, da ascendente IL e sobretudo do surpreendente CHEGA. Este último, não precisa de pensar, elaborar, estudar e propor, basta-lhe reagir, reclamar e denunciar. Nunca se viu um partido ganhar tanto fazendo tão pouco. A cada berro do CHEGA, o PSD treme. Neste partido, toda a direita treme. É verdade que o CHEGA só pensa nisso: destruir o PSD, afastar o PSD, colher votos do PSD, perturbar deputados do PSD e provocar divisões no PSD. Mas também é verdade que, no PSD, só se pensa nisso: como se libertar do CHEGA, como evitar o CHEGA e como impedir o CHEGA de crescer.

 

À esquerda, as coisas são diferentes, dado que o PS está no Governo. Mas a semelhança de situações é maior do que parece. Na verdade, as margens das esquerdas, o PCP e o BLOCO, comandam muito do que o PS é e quer ser. Até já comandam, um pouco, algumas iniciativas do Governo. Apavorados com as suas minorias e descrentes nos amanhãs e nas suas gloriosas fantasias, estes partidos, um de trabalhadores conservadores, outro de burgueses radicais, têm um só objectivo: desmembrar o PS. Criar a dúvida e a intranquilidade nos deputados socialistas, seduzi-los com rupturas radicais e revoluções de costumes e prometer ternura militante e calorosas bases sociais, são as linhas de acção destes partidos das margens. A verdade é que conseguem. Muitas das suas propostas sobre a eutanásia, o casamento, o divórcio, a adopção, a união de facto, a homossexualidade e suas variantes, as actividades culturais, as campanhas contra o racismo e aquilo a que chamam a descolonização e a desracialização, têm como o objectivo primordial desestabilizar o PS. O que têm conseguido com brilhantismo. Nunca se viu partidos tão pequenos e tão insignificantes terem tanta influência no Parlamento e na vida política nacional.

 

Temos assim que os dois grandes partidos do sistema, PS e PSD, pouco se ameaçam ou contrariam reciprocamente, antes agem em função das margens que comandam cada vez mais o Parlamento. Ainda não, muito, a vida social e política, mas sim, cada vez mais, o Parlamento. O que não é pouco. Entregar o Parlamento às margens activistas é meio caminho andado para tornar o país instável e ingovernável. Há muitos problemas a tratar e tentar resolver com enorme urgência, como sejam a educação e o Serviço Nacional de Saúde. Mas tal só se pode conseguir se houver equilíbrio e algum consenso de ponderação. Nunca se resolverá com as margens radicais.

 

Pode a liberdade individual fazer perder a qualidade da representação? É bem possível que seja o contrário a verdade. A escolha faz-se pelo valor intrínseco do que se diz e promete e pelas garantias oferecidas por um percurso, não pela autorização partidária e burocrática. Pode a liberdade de candidatura e de voto aumentar a imprevisibilidade? É provável. Mas a democracia é imprevisível por definição. E o melhor caminho para ultrapassar os riscos da imprevisibilidade não é o do arranjo autoritário, mas sim o do entendimento, da negociação e do diálogo. Será que a liberdade individual dos deputados é um risco para a estabilidade? É possível que sim. Mas a liberdade tem preços. Que valem a pena. A livre representação democrática é uma das figuras ou entidades mais dignas da vida política. É condição de nobreza da função.

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Público, 4.2.2023

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