24.8.24

Grande Angular - Ao serviço do povo. Ou do público.

Por António Barreto

Antigamente, dizia-se, com orgulho, que a política devia ser feita “ao serviço do povo”. Era sobretudo a esquerda que assim se exprimia, mas também por vezes a direita. Com o tempo e as modas, “serviço público” foi ganhando o favor dos políticos. Povo era mais trabalhador, mais combativo… A merecer atenção. Público ficou a ser mais neutro, mais interclassista, mais “toda a gente” … Mais consumidor e eleitor. O “interesse público” ou o “serviço público” são expressões mais pacíficas e menos reivindicativas. Quase todos os partidos rectificaram a sua linguagem e substituíram povo por “público”. Nos extremos, à esquerda e à direita, ainda se prefere “povo”, mais popular ou mais populista.

 

Assim é que “fazer política” é servir o povo ou servir o público. Em doses variáveis, também pode ser servir os seus amigos, uma classe social, a si próprio ou instituições e empresas. É aqui que surge uma equação ou uma questão dramática. Conquista-se o poder político (os votos e os respectivos mandatos) para servir o povo e o público? Ou serve-se o povo e o público para conquistar o poder político? E quando se está a servir o povo e o público, estamos a falar de quem? Da população? De uma classe social? De um partido? De certas famílias, grupos e empresas? Qualquer político ou todos os políticos responderão de modo equivalente. Dizem que se conquista o poder político para servir o povo e o público. Consideram os seus adversários apenas interessados em beneficiar a sua classe social, os seus amigos e os seus clientes. E reservam para si próprios o estatuto de impoluto servidor. Nada de novo.

 

No entanto, a situação que vivemos é exemplar. Ninguém tem a maioria parlamentar. Ninguém pode, sozinho, aprovar qualquer coisa de jeito. Mas ninguém quer ficar com o ónus sem ter o mérito. Para o PS, aprovar os planos do governo, sem nada retirar, é fonte de angústia. Reprovar os projectos demagógicos do governo não é compreensível pelos beneficiários. Não aprovar os bons projectos do governo também é nefasto para as intenções do partido. Para a oposição, um recurso possível consiste em aprovar as suas medidas que obriguem o governo a fazer o que não quer. Mas isto tem dificuldades, a começar pelo facto de o governo ter meios para adiar as medidas da oposição. Mas também por causa da insuficiência de votos: o PS e o Chega não têm, sozinhos, votos suficientes. Juntar esforços é mau para os dois… 

 

A distribuição de dinheiro é um dos mais velhos expedientes utilizados para ganhar votos e apoios ou para incomodar as oposições que não têm esse recurso. Também é instrumento de demagogia, dado que as oposições não conseguem ou têm dificuldade em votar contra os “bodos aos pobres”. Assim como não lhes é fácil arranjar votos para os seus próprios “bodos”. O PSD e o governo dedicam-se agora a exactamente este exercício: distribuir a fim de mais tarde recolher. Sem tirar nem pôr. Dar o mais possível ao maior número, dar cheques e vantagens, à procura de benefícios ulteriores e na tentativa de retirar argumentos à oposição e aos populistas.

 

Apesar de não ser inédito, nem original, o Chega é um caso à parte. Não quer gerir a democracia. Pretende capturá-la ou destruí-la. Por “dentro” ou por “fora”. Com ou sem eleitorado. Com ou sem protesto nas ruas. Tudo o que este partido faz tem um sentido: incomodar os partidos democráticos, prejudicar o governo, dar voz e força a tudo o que seja protesto, criar fontes de conflito e liquidar as vias democráticas de governo. Isso já se sabe. Todos sabemos. Só que, como sempre acontece nestes casos, o Chega tem razões. Todas as fontes de descontentamento são as suas razões. Todos os protestos são também seus. As reivindicações de todas as populações são suas. Sobretudo quando os governos ou os partidos democráticos não ouvem essas razões e nada fazem para as tratar e resolver. Em vez disso, reclamam contra o Chega e garantem que este é fascista, racista e xenófobo. É possível que o Chega seja um pouco ou muito disso tudo, mas esse não é o ponto. É típico da democracia: reclamar contra o protesto, em vez de tratar das causas do protesto. 

 

Entrámos numa fase da vida política particularmente sensível. A situação internacional é ameaçadora, mas a nacional, por uma vez, não o é assim tanto. Por enquanto. Mau grado as pressões e revindicações sociais, apesar dos perigos populistas, a situação social e económica do país oferece alguma tranquilidade. Desde que os partidos parlamentares e de governo façam o que têm de fazer, cumpram os seus deveres e abdiquem do seu egoísmo interesseiro. Caso contrário, os partidos democráticos serão severamente julgados por não terem criado condições de governo. Por não terem querido tomar as decisões necessárias a assegurar a realização de reformas. Por não terem abdicado dos seus interesses a fim de tratar de forma mais segura da prosperidade do seu povo.

 

Na melhor tradição republicana, o PSD e o PS estão a arranjar lenha para se queimar. Alimentam populismos e protestos. Estão a ajudar a crise em vez de tratar dela. Cada um dos dois está obcecado, no Parlamento e no governo, com o prejuízo que pode causar ao outro. O PS quer tornar o governo incapaz, quer legislar em vez dele, quer ficar com os louros da oposição e denunciar a impotência do governo. E não quer dar os seus votos aos projectos do governo, a começar pelo orçamento, porque não quer ser cúmplice e quer ganhar votos para eventuais eleições. O PSD e o seu governo querem tudo exactamente ao contrário, o que quer dizer, tudo igual.

 

Utilizando os lugares comuns consagrados, o PSD e o PS não estão a servir os interesses do povo, nem os do público, estão a procurar satisfazer os seus. Hoje, o PSD e o PS não procuram o poder político para servir o povo, antes tentam satisfazer o interesse público para ganhar o poder. Ninguém é totalmente cínico ou sincero, ninguém é absolutamente velhaco ou bondoso. Todos têm de tudo um pouco. Em cada um, a verdade é a proporção de bom e de mau. No caso presente, sabendo o que sabemos, com as ameaças internacionais, com um governo minoritário, com os perigos do populismo, perante a previsão de dificuldades sociais, estes dois partidos têm a mais estrita obrigação de encontrar a solução de governo estável, sólido e competente.

 

É assim que se serve o povo. Ou o público.

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Público, 24.8.2024

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