17.8.24

Grande Angular - Para que servem os Pactos de Regime?

Por António Barreto

A pergunta em título é de resposta múltipla. a) Para nada. b) Para disfarçar. c) Para enganar. d) Para adiar. e) Para evitar escolhas difíceis. f) Para transferir culpas por incompetência própria. g) Para responsabilizar os adversários. h) Todas as acima. A resposta certa é a última!

 

O “pacto de regime” é um mantra da democracia. O mais actual de todos. Já foi a educação. Cada vez que um político não sabia o que dizer, muito menos o que fazer, a saída era imediata: a escola! A frase começa por “a escola é muito importante para…” e termina com a identificação: a cidadania, a tolerância, o clima, a ecologia, a moral, os costumes e o civismo. Inventaram-se slogans agora com menos fulgor: “Educação para a saúde”. “Educação para a cidadania”. “Educação para o Património”. Com frases destas, evita-se a reflexão e a responsabilidade. E dá-se um ar de seriedade. Uma versão parecida era, por exemplo, “a cidadania começa na escola”. A fórmula dava igualmente para tudo. O que permitia culpar as gerações anteriores por defeitos e erros, ao mesmo tempo que remetia as soluções para as gerações futuras. Um “mantra” é coisa mágica. É feitiço. 

 

Agora, o mantra é o “Pacto de regime”. É antigo, mas tem cada vez mais saída e adeptos. Já houve tentativas no passado, nunca se chegou bem a vias de facto e o que se conseguiu falhou. Mas não retirou validade à bruxaria. O “pacto de regime” para a saúde é hoje o mais falado, o que tem mais adeptos, mas não é único. A educação, a luta contra a pobreza, a imigração e novamente a justiça estão entre os temas a que mais se alude para o referido “pacto”.

 

Como se trata de mágica, não é necessário tratar dos aspectos práticos. Mas tal é necessário. Na verdade, essas questões põem em causa o valor fundamental do “pacto”.  Como se faz um “pacto de regime”? Assinam todos, Presidente, Primeiro-ministro, Ministro da pasta, líderes dos partidos e presidentes dos grupos parlamentares? Não parece possível encontrar tal unanimidade. Nem responsabilidade. Como se pode tomar compromisso por longos períodos, sem ter em conta as gerações e as mudanças? Se é “de regime”, quem fica de fora? Se alguém ou alguns não querem assinar, já não é bem regime, mas quase. Tem o mesmo valor?

 

E a sociedade civil, trabalhadores, patrões, académicos e técnicos? Sem estes, um “pacto de regime” mais parece um acordo entre políticos, só entre “eles”, o que dá imediatamente mau aspecto. São sempre “eles nas costas do povo”. O que enfraquece a ideia de “pacto” e de “regime”. Mais valia recorrer a um dispositivo clássico chamado “referendo”, que aliás em Portugal tem má reputação e os partidos detestam.

 

Se o mais importante do “pacto” for a presença dos partidos políticos, dado que são eles que fazem os governos e os parlamentos, as perguntas óbvias são simples. A assinatura do líder partidário de hoje vale quanto tempo? Quantas legislaturas? E se a direcção de um partido, ou de vários, muda? Os novos líderes partidários ficam obrigados às assinaturas e aos pactos dos líderes anteriores? E se for um novo Ministro ou um novo Primeiro-ministro? Pode contrariar os “pactos” já assinados? Ou tem a obrigação de os seguir, como se fosse a lei do país? E se um novo governo entende, com a força do seu eleitorado, mudar o “pacto” e os seus dispositivos, como deve fazer? Mas se um governo pretende fazer a política nova, tem de pedir autorização aos restantes signatários dos “pactos”?

 

A acção legislativa fica, entretanto, limitada? Um parlamento não pode aprovar novas leis que contrariem os “pactos” precedentes? Mas não parece acertado limitar a soberania e a liberdade de um parlamento eleito, desde que as suas leis sejam legais e aprovadas pela maioria. Fica-se com a impressão de que um “pacto” tem duas possíveis existências. A primeira é autoritária e antidemocrática, obrigando as gerações futuras, os governos e as maiorias a respeitar decisões prévias. Decisões que nem sequer têm força de lei, muito menos de Constituição. São regras morais, ou crenças filosóficas e boas intenções que teriam mais força de lei do que as leis propriamente ditas. A segunda é de absoluta inutilidade e de mera propaganda. 

 

Não é por acaso, mas as ideias de “pactos de regime” surgem sempre em momentos estranhos. Com governos minoritários. Com oposições impotentes. Com presidentes hiperactivos. Com partidos egocêntricos. Em momentos de indecisão e transição. Surgem sobretudo quando um ou mais partidos se recusam a fazer o que deveriam, isto é, alianças parlamentares e coligações de governo, formais, duráveis e programáticas. Quando os partidos não querem fazer governo estável de maioria e de legislatura. Isto é, a ideia de “pacto de regime” surge sempre em momento de fraqueza, de indecisão, de cálculo interessado e de fuga à responsabilidade. 

 

O mais importante “pacto de regime” que se conhece tem um nome, Constituição. Esse é o “pacto”. Respeitado por todos. Só alterado em condições muito especiais, a fim de não mudar todos os dias. Suficientemente maleável para permitir viver em tempos diferentes.  Mesmo absurda em tantos aspectos, a nossa Constituição foi pacto que deu uvas. Um verdadeiro milagre. Permitiu 50 anos de vida, assim como sobreviveu a várias revisões, duas das quais atingiram a alma e o essencial, e ainda bem, pois vivíamos um quadro constitucional insuportável. Foram essas duas grandes mudanças (incluindo o essencial das estruturas económicas e o poder político) que permitiram que a Constituição sobrevivesse até hoje sem desastre de maior. 

 

Além da Constituição, há uma espécie de “pactos de regime” silenciosos, invisíveis, mas que têm sido muito eficazes. Nunca tratados como tal, mas discretamente aceites. Um é o que considera irrevogável a presença de Portugal na União Europeia. Nem todos aceitam, vários momentos vivemos nas últimas décadas em que a saída de Portugal da União ou do Euro foi defendida publicamente em campanhas eleitorais. Sem grande êxito, aliás. Também a participação de Portugal na NATO, de que é fundador e membro desde 1949, é tão sólida com um “pacto de regime” (e mais ainda, de dois regimes…), nunca foi objecto de assinatura formal entre partidos, mas quase todos a aceitam, com as reservas habituais dos comunistas que entendem que o país deveria sair. Um especial respeito pelas Forças Armadas faz também parte destes pactos invisíveis. Respeitados, em geral.

 

Pactos já temos. Falta é governar bem. Com maioria.

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Público, 17.8.2024

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