10.8.24

Grande Angular - Os culpados habituais

Por António Barreto

As políticas públicas têm, entre nós, resultados muito variados. Há, ao longo dos anos, êxitos indiscutíveis, como nos casos dos serviços domésticos, da mortalidade infantil, da alfabetização e do desenvolvimento da ciência. Vamos admitir que os responsáveis por estes feitos são os governos (uns mais do que outros), as autarquias (com diferenças entre elas), a Administração Pública, as empresas e os cidadãos. É o que se chama uma história feliz. Todos contribuíram para o bem de todos.

 

Mas também há resultados negativos. Ou seja, erros, falhanços, ineficácia, injustiça e corrupção. Os responsáveis serão mais ou menos os mesmos, dos cidadãos aos governos, passando pela empresas e pelas autarquias. Só que há algo mais a dizer. Cada um culpa os outros pelos erros e atrasos. Cada partido, com anos de governo, culpa os anteriores e os sucessores. Os partidos sem experiência de governo culpam os outros. As autarquias culpam os governos e a Administração central, além dos partidos das suas oposições. Os cidadãos culpam quase todos: “eles”.

 

Será sempre assim. É muitas vezes assim.  O eleitorado lá vai fazendo distinções, por vezes acertadas, por vezes ilusórias, mas sempre verdadeiras pois são as suas escolhas. É frequentemente difícil apurar quem foi responsável pelos erros e pela inércia. A democracia é assim. Por isso a “não democracia” culpa tudo e todos, com os chavões habituais: “são uns inúteis”, “ladrões” ou “corruptos”. Não se vai lá muito longe com esta disposição de espírito, mas a democracia é assim. Bom é saber guardá-la, com as suas imperfeições e as suas insuficiências.

 

Este relativismo sereno não pode ocultar os casos mais sérios. Há na verdade situações e falhanços que merecem análise atenta. Não propriamente para designar o culpado e encostar o responsável no pelourinho. Mas para perceber porquê. Só depois disso será possível fazer melhor.

 

É difícil eleger os casos mais graves e que melhor nos podem servir para aprender. Mas, nos tempos que correm, o primeiro parece ser o Serviço Nacional de Saúde. Aquele que foi, para muitos e durante anos, a pérola da democracia portuguesa e o caso mais brilhante das políticas públicas, transformou-se, diante de todos, com notícias sucessivas, no caso mais flagrante e no insucesso mais cruel. O fiasco das urgências, das maternidades, da obstetrícia e das cirurgias ultrapassa os limites do entendimento. Dinheiro? Investimento? Previsão? Organização? Vencimentos? Ganância? Concorrência? Mudança de costumes? Alteração da procura? Tudo pode ser invocado. Mas tudo era previsível. E para tudo havia recursos. O que faltou? O que falhou? Por que razão PS e PSD, ao longo de décadas de governo, não souberam gerir, não conseguiram corrigir, falharam as previsões, descuraram o sistema e deixaram o SNS entregue ao acaso e aos profissionais que, contra o vento, tentam fazer muito mais do que os seus deveres?

 

Segundo caso de incompreensível incompetência, o do aeroporto de Lisboa. Após dez, vinte, trinta anos de hesitação, de promessas, de estudos, de contradições, de certezas, de garantias e de demagogia, ainda estamos nas vésperas das decisões, na antevéspera dos concursos e longe de certezas sobre a dimensão, a localização, o equipamento e a modalidade. Ao longo das décadas, vários líderes do PS e do PSD, Primeiros-ministros dos dois partidos e diversos ministros de ambos, anunciaram convicções e tomaram decisões. Contradisseram-se e desmentiram-se. Negaram o que fizeram e mudaram de opinião. E não foram só os partidos, os governos e a Administração pública, foram também as mesmas empresas de auditoria, de projecto, de consulta, de advogados, de engenharia e de lobby. O aeroporto já teve pelo menos cinco localizações, três variantes e quatro modalidades. Com frequência, as mesmas pessoas ou as mesmas instituições disseram, em poucos anos, o que se devia fazer e o seu contrário.

 

Terceiro caso de inegável incompetência, de absoluta insensatez e de incompreensível falhanço: o caminho-de-ferro, a rede de comboios, o sistema antigo, as novas linhas e o famigerado TGV. O que se passou realmente nestes trinta anos durante os quais todos os governos e os seus dois grandes partidos, PS e PSD, prometeram renovar, revalorizar, equipar, modernizar, aumentar e melhorar as redes existentes e construir novas e todos, sem excepção, fizeram exactamente o contrário? Fecharam centenas de quilómetros de linhas. Apodreceram outros tantos. A “grande velocidade” foi adiada décadas. Os equipamentos ficaram obsoletos. O sistema actual é um verdadeiro escândalo de desconforto, de insegurança e de ineficácia.

 

Quarto caso a merecer análise, o estado a que a justiça chegou. A morosidade é proverbial. A tendência para a prescrição inscreveu-se nas tradições nacionais. A luta entre corpos profissionais, agressivos e auto-suficientes, atingiu cumes inéditos. O uso e abuso de escutas telefónicas e a gestão das mesmas ao longo do tempo e em conformidade com as qualidades dos “escutados” ou de suas vítimas desesperam qualquer pessoa ciosa do Estado de direito e dos direitos dos cidadãos. A divulgação de segredos e de conteúdos de escutas é hábito que distorce o direito e o sentimento de justiça. A evidente desigualdade social que a justiça portuguesa confirma e dilata é indiscutível. A corrupção continua a minar impunemente os alicerces da democracia. A incapacidade de adiantar e terminar processos que envolvam muito dinheiro, políticos reputados e ricos poderosos começa a ser lendária. A perda de confiança na justiça, por parte de tantos cidadãos, é notória e perigosa. A justiça vive em desequilíbrio profundo, favorecendo alguns profissionais, certos corpos e os poderosos. Com uma característica especial: como toda a gente depende da justiça, como quase todos aspiram a justiça e como muitos receiam represálias, estabelece-se uma crença: não é assim tão grave, a justiça ainda faz muito, são só uns casos excepcionais… Verdade é que parece ser o caso mais flagrante de impotência do legislador, de fraqueza do soberano e de incapacidade dos reformadores. 

 

PS e PSD têm de comum uma história de serviços prestados ao país e à população. Essa história é indiscutível. Mas também têm de comum uma enorme ineficácia e um estranho hábito de uso e abuso do poder político. Como têm de comum terem deixado decapitar a inteligência e a capacidade técnica do Estado, deixando-o à mercê da demagogia e dos vampiros habituais.

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Público, 10.8.2024

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1 Comments:

Blogger MELODY JACOB said...

You've provided a detailed critique of various systemic failures in Portugal, from healthcare to infrastructure and justice. These issues highlight the need for effective management and reform to address long-standing problems.

I just posted a new blog post www.melodyjacob.com. I invite you to read and let me know what you think about it. Thank you.

10 de agosto de 2024 às 11:37  

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