11.12.22

A sotaina do pecador

Por Antunes Ferreira

Missa aos domingos na igreja de Nossa Senhora das Dores complementada no Galão, ali à rua da Beneficência, por bica com cheirinho e pastel de nata para o pai Januário, chá de camomila e queque para a mãe Alzira e um galão e tosta de queijo e fiambre em pão de forma aparado para o Janeca, de nove anos, filho extremoso do casal Rocha Monteiro. O rame-rame só se interrompia quando o pater familiae andava por fora (era caixeiro-viajante de roupas interiores para senhoras Triumph e arriscava o seu latinório pois quase acabara o Seminário dos Olivais.

 

De seu nome completo Januário da Costa Figueiredo, 42 anos, sócio número 187.096 do Benfica, vinha de uma família humilde, natural de Silgueiros, no distrito de Viseu, fizera a escola primária e por empenho do tio Jacinto entrara para o Seminário com o destino traçado: ser padre. Cumprira dezanove anos, fora à terra comemorá-los, a sotaina exibida encantara uns abespinhara outros, convidaram-no para uma pinga na taberna do Ezequias. 

 

Vou, não vou, se calhar parece mal, estou quase a receber ordens, mas se recuso também não cai bem, pensam que reneguei a origens, uma merda, mau, já estou a pecar em pensamento por palavras, mas Deus em Sua infinita Bondade vai perdoar-me…” Persignou-se e foi. “Diga lá Januário se esta bicha não é de estalo? Melhor do que ela não há no nosso distrito; qual quê, em todo o país1 Medi-la com o vinho da missa é um pecado mortal…” O Ezequias ria-se, desbragado, os outros igualmente e foram-se enchendo os copos de vidro grosso.

 

Grosso chegou a casa o Januário,  batina enlameada, tinha chovido  a potes, às ruas da aldeia nem cheiro de asfalto ainda surdira. “Oké que tu andaste a fazer pra vires nestes preparos?” interrogara a mãe Esperança, na esperança de resposta satisfatória, enquanto o pai Arnesto enrolava um cigarrito “estas mortalhas são piores que o Deus me livre” e plácido acrescentava: “Ó mulher, não tens nada com isso, o moço está de férias!”

 

Pé à frente, pé atrás, o ante padre meteu-se no seu antigo catre tentou descalçar s botas, e quando depois de uma grande luta com os atacadores, atirou-as para um canto despiu-se enfiou.se na cama, arrotou várias vezes, chegou-lhe um vómito à boca, mas por fim adormeceu. Sonhou – nunca tal lhe acontecer – com a filha do Ezequiel, a Alzira, que andara com ele na escola e fora para Lisboa fazer não sabia ele o quê.

 

Raio de sonho aquele, tentação do Diabo. Descobria-se na cama com ela a seu lado, fumando entre eles o mesmo cigarro trocado de boca em boca ambos nus e suados, o Sol espreitava pelas frinchas das persianas, depois de uma noite desvairada. Começara com o encontro no Galão, pastelaria que frequentara com os progenitores quando gaiato.

 

Logo o sonho avançara a um ritmo alucinante; Alzira era exactamente como ele a imaginara (mas quando?) uma fêmea completa da cabeça aos pés, moldada a preceito, simpática e airosa – sem ser de beleza estonteante – boa conversadora e, pasme-se. Culta. A dada altura, quando recordavam a dona Clélia, professor que utilizava a menina dos cinco olhos tocara-lhe na mão e ela nã a retirara, enquanto as pernas d ambos trocavam galhardetes.

 

Ela comentara que a sotaina lhe caía bem, mas qual o motivo que o levara para o sacerdócio ele que era um perfeito homem com características evidentes que satisfariam qualquer mulher e embrenham-se numa polémica amigável sobre o celibato argumentado Alzira que os pastores protestantes casavam e não era por isso que não serviam melhor Deus.

Nesse preciso momento acordara com a boca a saber a papel de música e uma decisão inabalável. Deu à mãe a sotaina pedindo-lhe para a lavar e mandar para Lisboa para onde ele iria nesse mesmo dia no autocarro que saía de Viseu, “Mas meu filho, nem acabaste as férias. Que vais fazer para lá? Estás farto de nós?” Assegurou-lhe que não se tratava nada disso, era apenas um assunto importante do Seminário.

 

Antes de apanhar o táxi do Malaquias (o único que vivia em Silgueiros) passou pelo Ezequiel a perguntar-lhe se queria que ele levasse alguma coisa para a Alzira e o taberneiro além de lhe dar o número do smartfone dela  entregou-lhe uma caixa com três garrafas daquele tinto, bebida de deuses que Januário provara e (re)provara no dia anterior.

 

Mais adiantou o pai da moça que ela trabalhava como secretária numa firma de arquitectos, ganhava bastante bem, comprara um T2 na Alta de Lisboa, sozinha, até lhe deu a morada. Que fizesse boa viagem. Apenas estranhou vê-lo vestido à civil, mas soltou umas gargalhadas quando Januário o informou do estado em que ficara a  sotaina depois da sessão vinícola e que a fatiota era do seu primo Armando que tinha a mesma estatura dele. 

 

Reitor do Seminário, o cónego Simplício das Neves cruzou os braços, ergueu os olhos para o seminarista em pé defronte da sua secretária: “Tu que já és um acólito vens dizer-me que já não queres ser padre! Coisa estranha! Mas como acredito no livre arbítrio, gostava de saber qual o motivo que te leva a tomar uma tal decisão tão grave?”

 

Firme no seu propósito, Januário encheu o peito e soltou: “Saiba Vossa Reverência Senhor Reitor que desde o princípio vim para cá ao engano. Não é que me falte a Fé; creio em «quase» tudo o que a Igreja postula. Porém, é no «quase» que reside a questão”. Corria entre os clérigos que o reitor poderia ser o futuro Patriarca, Cardeal, e (quem sabe?) até ascender à cadeira de São Pedro. 

 

Qualidades não lhe faltavam, entre as quais avultava a diplomacia. Por isso fitou Januário como um pai olha para um filho, fez um meio sorriso: “Pronto, meu amigo, não falo mais nisto. Tens algum projecto para fazer? Quando queres sair? Em que te posso ajudar? Tens sempre aqui um telhado para te acolher e uma mesa para te alimentares em caso de necessitares.” E levantando-se, deu-lhe um abraço desejando-lhe toda a sorte do Mundo.

 

Emalados os poucos pertences, Januário ligou para a Alzira, admiradíssima com o telefonema. Combinaram encontrar-se no dia seguinte para ele lhe entregar as garrafas e trocar dois dedos de conversa. Onde? Podia se no Galão? Podia. C’os diabos, pensou Januário, e o sonho? Que se lixasse o tal sonho. No Galão ele não iria galar a jovem, poi não?

 

Mas há sonhos e sonhos. O apartamento na Alta de Lisboa com vista para o Parque das Conchas e dos Lilases era moderno, bonito e bem mobilado. Terminara ali o galão do Galão.  E decorrera ali também a parte do sonho que levara ao abandono do Seminário. Foi uma luta ardente, pele contra pele, beijos percorrendo os recônditos mais íntimos de ambos, penetração suave depois galopante, caricias inebriantes, chupões desvairados…

 

E quando, como no sonho havido em  Silgueiros trocavam o cigarro salivando o sabor dos lábios de cada um, a Alzira sussurrou-lhe ao ouvido: “Tu és muito melhor todo nu do que com a sotaina…” 

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