1.12.22

A passagem do ano

Por Antunes Ferreira
A passagem do ano Por Antunes Ferreira Combinação perfeita. Casais da terceira idade (maneira inventada para tentar dourar os muito anos, quer-se dizer a velhice gaiteira ainda) tinham levado os dias de Dezembro – e até os finai do Novembro anterior – primeiro a idealizar o que pretendiam realizar, depois a programar tarefas para a concretização do desiderato: a passagem do ano à maneira, quer-se dizer da forma como no antigamente se festejava a data. A ideia tinha partido da Senhora Dona Mercedes de los Remedios Muñoz y Alvarenga Mascarenhas, viúva do general Virgílio Xavier Furtado de Caldeira Mascarenhas que em tempo fora membro dos Viriatos grupos de militares portugueses que tinham combatido n Guerra Civil da Espanha ao lado dos nacionalistas dos generais Franco, Mola, Primo de Rivera e outros. Natural de Sancti-Spiritus, nas cercanias de Badajoz, Mercedes aos seus dezassete anos presenciara la matanza de los comunistas en lo ruedo de la plaza de toros de la ciudad e filha de um ganadero executado pelos republicanos vibrara pela venganza contra todos los hijos de puta que habían asesinado a sus padres, hermanos y hasta a una cuñada embarazada de siete meses! La sangre que empapó el ruedo de la Plaza de Toros no fue suficiente para ella. ¡Había que matar a más bastardos! Fue allí donde conoció a un teniente portugués y se enamoró de él. Resultado: cinco hijas y tres hijos. ¡El tiempo no ha vuelto! Havia, é certo, aquele António Mourão ( aliás caído em desgraça pelos comunistas que tinham inventado aquele malfadado 25 de Abril) que cantava e bem um fado “Ó tempo, volta p’ra trás, dá-me tudo o qu’eu perdi, tem pena e dá-me a vida, a vida qu’eu já vivi: Ó tempo volta p’ra trás, Mata as minhas esperanças vãs, Vê que até o próprio sol volta todas as manhãs…” Contudo, era uma cantiga, a realidade era outra, absolutamente distinta. Não é que pudesse dizer que passasse dificuldades, nada disso. A pensão do Virgílio era suficiente para manter uma vida normal até mesmo com as suas estravagâncias e nunca precisara de recorrer à prole, bem pelo contrário, era a ela que algum deles recorria em caso de necessidades. Mas, neste particular, a questão era outra. Tratava-se da passagem do ano. Cuja magnitude tinha de ser encarada com muita atenção pois que o ano que agora esticava o pernil fora de tal sorte una mierda. Perdonadme amigas, cuando estoy muy aburrida se me escapa la lengua y me voy a quedar en castellano, pero se que me entendéis, los portugueses son muy dotados en idiomas. O círculo das senhoras (que se reunia duas vezes por semana) era composto pelas dr.ª Maria de Fátima Constância, dona das Farmácias Boa Saúde e São Sebastião, Júlia Sequeira do Rosário Martins, ex-professora liceal, Manuela Pinto Brochado e Silva, proprietária de vários prédios nas Avenidas Novas, Francisca (Chica) Rodrigues Santinho, doméstica e Marinela Gusmão Neto Botafogo, brasileira, residente em Portugal há mais de trinta anos, divorciada. Homens – nem vê-los. O réveillon seria apenas feminino. Coisa simples. Uns pastelinhos, umas sanduichas de queijo e fiambre – e jámon serrano acrescentara a Mercedes com o aplauso da pequena assembleia – um bolo-rei da Gleba (que dizem ser o melhor da capital) que a Maria de Fátima traria, umas broas e claro frutos secos sem faltar as passas de uvas para as doze serem comidas ao ritmo das badaladas. E quanto às bebidas? Marinela adiantou que iria prepara umas caipirinhas caprichadas, além dum tinto do Douro e dum branco de Pias fornecidos pela casa. Além dum Domecq – 30 anos e finalmente o champanhe – o verdadeiro que a Nela avançou com a proposta ovacionada moderadamente: Duas garrafas de Veuve Clicquot Yellow Label que faziam parte da garrafeira do ex-marido que fugira com uma serigaita balconista do Chiado. Tudo combinado, tudo marcado para as nove e meia da noite para dar tempo até às doze badaladas dadas pela televisão. E aqui começou a discórdia. Qual o canal? Que a mais fiável era a tradicional RTP que já levava muitos anos a anunciar anos novos, mas a SIC não se ficava atrás, isto para não falar na TVI e agora a CNN – Portugal que estava a fazer um belo serviço. Foi só quando ouviram vindos das janelas dos prédios vizinhos e dos da Mercedes o ruido das batidas em tachos e panelas se deram conta de que já estavam no 2023 e nem tinham dado conta das doze badaladas. Que se lixassem. Saltaram as rolhas do champagne e entraram no novo ano a dormir na casa da Doña Mercedes de los Remedios Muñoz y Alvarenga Mascarenhas, viúva do general Virgílio Xavier Furtado de Caldeira Mascarenhas, que, por sorte, tinha uma da data de quartos e camisas de noite para dar e vender. E usar.

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