22.4.05

«Acontece...» - «Vem, Bento, e fulmina-os !»

*Crónica de Carlos Pinto Coelho*

Ainda no rescaldo da nomeação do novo Papa, D. José Policarpo foi submisso e sábio. Disse acreditar que este é o papa indicado por Deus e que, por isso, devem cessar todas as reservas à sua escolha. Depois, atento à perplexidade de uma parte do povo cristão, acrescentou que Bento XVI poderá surpreender pela diferença em relação àquele cardeal Ratzinger que durante mais de vinte anos governou com mão de ferro a Congregação da Doutrina da Fé.

O velho Glóvis enfureceu-se com a segunda parte da mensagem do Patriarca de Lisboa. A admissão velada de uma possível alteração de pensamento e acção por parte do Panzerkardinal, como Ratzinger é conhecido em Roma, indignou profundamente o meu amigo. Que logo me telefonou, intimando-me a ouvi-lo com atenção.

E disse Glóvis:

É chegada a hora da purificação sem tibiezas. Da imposição da verdade às contemporizações espúrias. Da definitiva clarificação. Este é o tempo de sanear o rebanho e conduzi-lo com firmeza para pastos limpos de ervas daninhas.

Não se lê em Mateus (5, 13) “ Vós sois o sal da terra; e, se o sal for insípido, com que se há-de salgar?” E em que se traduz isto, nos nossos desvairados dias?

- Em que se traduz isto, Glóvis? Perguntei.

E disse Glóvis:

O fim dos relativismos, a robustez de uma identidade forte, inequívoca. Com Bento ao leme, católico é aquele que se distingue, em cada gesto e momento. Podem todos os outros arrastar inutilmente os seus fins de semana pelas cavernas consumistas dos centros comerciais, crivar-se de contas de telemóveis, encher os seus olhos com as infâmias dos jornais de escândalo, apodrecer diante de televisões imbecilizantes, fruir com júbilo infantil a escravidão do futebol, abandonar os seus filhos adolescentes nos abismos da internet, apaziguar a menoridade das suas vidas no álcool e em multas de estrada. Um católico não. Ele é o sal visível da terra pagã deste século.

Ofegante, Glóvis faz pausa. Em silêncio, acho-o terrivelmente trivial. Mas ele adivinha-me o pensamento.

E disse Glóvis:

Sei bem que, ainda incrédulos, rejubilávamos com a chegada deste magnífico Benito XVI à cabeça do nosso tresmalhado rebanho, e já o inqualificável jornal berlinense Tageszeitung titulava, com satânico escárneo: “Oh! Meu Deus! – Ratzinger é Papa!” Imundo mas expressivo sinal dos perigos que, quais lobos famintos, roçam agora a cadeira de Pedro. Abjecções inomináveis como o divórcio ou, pior, a Sagrada Comunhão nas bocas de mulheres e homens divorciados. Heresias como o uso de contraceptivos a coberto da sida, a fecundação artificial e os homossexuais, certos avanços da biogenética, farpas que a inteligência dos humanos tenta cravar na liberdade que o Criador lhe outorgou. E que dizer da insanidade demencial com que alguns falam de mulheres exercendo o sacerdócio? E de sacerdotes rompendo o celibato? E de reformas no processo de eleição dos Papas? E dessa loucura a que chamam “teologia da libertação”? Senhor! Que tonturas, que demoníacos intentos pairam por aí, inclusivamente – horror! – no nosso próprio redil? Vem, Bento, fulmina-os!

E mais não disse Glóvis.

Antes que eu respondesse fosse o que fosse, desliga-me o telefone. Um hábito antigo.

Suspendo-me a imaginar que se cumprem os vibrantes desígnios de Glóvis. A ira purificadora saída com o fumo branco deste Conclave, reduz o actual grande rebanho católico planetário a um mero punhado de eleitos. Que se encaminham, em santa e justa alegria, para a companhia de Bento XVI.

Do lado oposto, a multidão de excomungados avança, pausadamente, para a companhia de Jesus.
-
(«A CAPITAL» 22 Abril 2005)

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Quem é Glóvis?!

22 de abril de 2005 às 12:29  
Anonymous Anónimo said...

Glóvis não é mais do que a metafórica tradução dos mais terríveis e fantasmas que a eleição deste papa fez nascer em muita gente.

23 de abril de 2005 às 17:05  

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