3.6.05

«Acontece...»

(A crónica das sextas-feiras de Carlos Pinto Coelho)

O breve grupo que passa

SOU o menino da frente, o que lidera, o que avança e faz avançar – disse o velho Glóvis. Sou o que, a um tempo, vigia a rectaguarda e projecta com decisão a perna que tudo impulsionará para diante.

Disse, depois, Glóvis:

Fixa bem este instante. Vê como parece uno e harmonioso o conjunto, quando na verdade está rasgado em grupos diversos, cada qual com as suas atitudes, seus movimentos e intenções. Repara naquela figura que segue, solitária e cabisbaixa, tendo a seu lado uma floresta de mãos solidárias. Olha com atenção os que marcham atrás de todos, tão absortos vão nos seus destinos, tão desligados do mundo que lhes vai na frente. Atenta na criatura que estende um braço na busca vã de companhia. Observa que ninguém tem ambos os pés assentes no chão que pisam.

E digo:

Sim, Glóvis, tudo isso vejo.

E o velho:

Que vês aqui de robusto e firme senão duas colunas sólidas? Elas deixam passar, indiferentes, uma amálgama de circunstância que se vai desvanecer. Percebe que este grupo se há-de sumir, longe do universo que está lá ao fundo, distante, encaixado no tempo e na serenidade das coisas vulgares.

Insisto:

São crianças, velho Glóvis, são o futuro! Como podes falar em circunstância efémera?

E diz Glóvis:

É da comunidade que falo, não de cada um dos seus elementos. E eu sou o menino da frente, o que lidera e faz avançar este grupo esboroado. Que só existe na tua fotografia. Sou o seu motor, a sua alavanca, a sua primeira, única e também derradeira razão de ser.

Longo é o silêncio. Avanço, então:

Quem és tu?

E Glóvis, de súbito enfurecido:

Sou a tua imaginação, desgraçado. Esta fotografia não existe.

(C. Pinto Coelho - «A CAPITAL», 03 de Junho de 2005)

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Temos aqui, obviamente, uma metáfora sobre a Europa. Se for como penso, está lá tudo ou quase.

5 de junho de 2005 às 02:57  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Sim, a começar por «estarem com um pé atrás»...

5 de junho de 2005 às 10:19  
Anonymous Anónimo said...

Agora é o sr. Blair que tem medo do referendo. É aquela criança lá ao fundo, a querer atrasar-se do pelotão...

6 de junho de 2005 às 10:18  

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