O deslize
Não resisto a contar aqui uma incrível aventura que se passou com o meu velho amigo Roque, ex-colega da Escola, que, embora nunca tendo singrado nos estudos, ganha hoje muito mais do que eu - e com toda a justiça, pois é muito mais útil à Sociedade. Dou-lhe, portanto, a palavra.
ANTES de me criticarem, pensem bem no seguinte:
Já viram a multidão de pessoas que também ganha a vida com a desgraça do próximo? Para já não falar da infinidade de médicos, enfermeiros, farmacêuticos, cangalheiros e de todas as indústrias associadas, temos ainda os canalizadores (que ficarão muito felizes se alguém tiver uma inundação em casa), os bate-chapas (que é difícil pôr a colaborar em campanhas de prevenção rodoviária) e por aí fora...
Pois eu, como proprietário de um reboque, sou também um dependente de acidentes. Por isso, desde que não haja mortos nem feridos… quantos mais, melhor. Afinal são o meu ganha-pão, que não vai faltando pois os portugueses parece que aprenderam a guiar em jogos de computador e, na estrada, portam-se como se usassem o joystick em vez do volante.
Ora, um dia, estava eu muito sossegado quando tocou o telemóvel.
A chamada caiu várias vezes e só estabilizou bastante mais tarde (e até com muito bom som, como verão a seu tempo). Quando eu perguntei onde era o acidente, respondeu-me uma voz muito pesarosa:
- Não sei...
Essa agora! Se o cliente não sabia, como é que eu o poderia ajudar?!
- E não pode perguntar a alguém? Não há pessoas ao pé de si para lhe dizerem onde é que está?! - perguntei eu, cada vez mais espantado.
- Haver, há... Mas estamos todos com o mesmo problema: sabemos onde o acidente começou, mas não sabemos onde é que vai acabar - parecia coisa de maluquinhos!
- Sim, é que o acidente ainda está a decorrer... - esclareceu, por fim. Mas nessa altura caiu a chamada.
Que diabo! Fiquei a matutar nessa conversa tão estranha, e lembrei-me de ligar a televisão para tentar saber o que se passaria. No entanto, e pouco depois, o telemóvel voltou a tocar:
- Você tem aí à mão o novo Código da Estrada? Qual é a multa por ir a uns 200 na A1? - lá lhe disse.
- E por andar em marcha-atrás?» - lá lhe respondi...
- E se forem as duas coisas?»
- Como assim?! Andar a 200 e em marcha-atrás numa auto-estrada?!
Eu até já começava a achar graça à conversa, mas a certa altura dei um salto na cadeira! Uma emissão em directo, de helicóptero, ajudava-me a perceber o telefonema misterioso. Talvez saibam que para os lados de Vila Franca há uma fábrica de rolamentos. Mas talvez não saibam que as esferinhas vêm de Espanha e ali só as metem nos aros.
E a SIC estava a dar, em directo, o resultado de um camião TIR, com 100 milhões dessas bolinhas, se ter virado na A1! E lá se via o meu correspondente telefónico, bem na dianteira de um pelotão de carros (meus futuros clientes, previsivelmente!) a rodopiar e a deslizar...
«Hum...» - matutei - «Estão quase a chegar à portagem de Alverca... Talvez alguns passem, mas a maioria fica logo ali encalhada... O melhor é ir já para lá!».
E, deliciado, ainda comentei para mim mesmo:
«Mas, à mistura, vai haver muitos que vão ser multados por passarem na portagem sem pagar!»
E esperei mais um pouco, só para ver essa parte da fita...
- Bingo! - berrou o nosso homem ao telefone ao mesmo tempo que dizia adeus para o helicóptero... - Passei na portagem certa! Sabe? É que eu tenho Via Verde!
NOTA FINAL: A chamada voltou a cair. Pus o reboque em movimento, e fui andando para aqueles lados. O que não me iam faltar era clientes, mas o que me ligara tinha prioridade total. A certa altura, como eu esperava, ligou-me novamente. Desta vez - que maravilha! - ouvia-se em perfeitas condições:
- É natural que agora se oiça bem - comentou ele - Estou aqui estampado, mas tive muita sorte, pois foi contra uma antena do meu operador!
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4 Comments:
Para desenjoar da política, de vez em quando publicarei aqui alguns textos de ficção.
Este(que aqui teve pequenas adaptações) foi publicado na revista «Internet Prática», na série de histórias «Serapião, o Sabichão» que, com muitas outras histórias, está também em:
www.janelanaweb.com/humormedina
Na altura da publicação desta história, escreveu-me um entendido em telecomunicações a corrigir o que se diz na última parte do texto:
«Por baixo de uma antena não é o sítio onde a propagação é melhor, muito antes pelo contrário».
Portanto, se calhar o Roque fez confusão: estampou-se contra uma antena da TMN mas estava a usar um telemóvel Vodafone...
UMA DELÍCIA!!
Um abraço
Duarte
Ainda pensei:
«Se o condutor vai a "rolar sobre esferas", o velocímetro do carro não funciona, ou funciona mal.
Como é que ele sabe que vai a 200 km/h?»
Mas depois li melhor: ele só diz que vai "a uns 200".
Imagino que, com a aflição, mesmo que vá só a 50 dirá isso!
C.E.
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