2.6.05

O deslize

Não resisto a contar aqui uma incrível aventura que se passou com o meu velho amigo Roque, ex-colega da Escola, que, embora nunca tendo singrado nos estudos, ganha hoje muito mais do que eu - e com toda a justiça, pois é muito mais útil à Sociedade. Dou-lhe, portanto, a palavra.

ANTES de me criticarem, pensem bem no seguinte:

Já viram a multidão de pessoas que também ganha a vida com a desgraça do próximo? Para já não falar da infinidade de médicos, enfermeiros, farmacêuticos, cangalheiros e de todas as indústrias associadas, temos ainda os canalizadores (que ficarão muito felizes se alguém tiver uma inundação em casa), os bate-chapas (que é difícil pôr a colaborar em campanhas de prevenção rodoviária) e por aí fora...

Pois eu, como proprietário de um reboque, sou também um dependente de acidentes. Por isso, desde que não haja mortos nem feridos… quantos mais, melhor. Afinal são o meu ganha-pão, que não vai faltando pois os portugueses parece que aprenderam a guiar em jogos de computador e, na estrada, portam-se como se usassem o joystick em vez do volante.

Ora, um dia, estava eu muito sossegado quando tocou o telemóvel.

A chamada caiu várias vezes e só estabilizou bastante mais tarde (e até com muito bom som, como verão a seu tempo). Quando eu perguntei onde era o acidente, respondeu-me uma voz muito pesarosa:

- Não sei...

Essa agora! Se o cliente não sabia, como é que eu o poderia ajudar?!

- E não pode perguntar a alguém? Não há pessoas ao pé de si para lhe dizerem onde é que está?! - perguntei eu, cada vez mais espantado.

- Haver, há... Mas estamos todos com o mesmo problema: sabemos onde o acidente começou, mas não sabemos onde é que vai acabar - parecia coisa de maluquinhos!

- Sim, é que o acidente ainda está a decorrer... - esclareceu, por fim. Mas nessa altura caiu a chamada.

Que diabo! Fiquei a matutar nessa conversa tão estranha, e lembrei-me de ligar a televisão para tentar saber o que se passaria. No entanto, e pouco depois, o telemóvel voltou a tocar:

- Você tem aí à mão o novo Código da Estrada? Qual é a multa por ir a uns 200 na A1? - lá lhe disse.

- E por andar em marcha-atrás?» - lá lhe respondi...

- E se forem as duas coisas?»

- Como assim?! Andar a 200 e em marcha-atrás numa auto-estrada?!

Eu até já começava a achar graça à conversa, mas a certa altura dei um salto na cadeira! Uma emissão em directo, de helicóptero, ajudava-me a perceber o telefonema misterioso. Talvez saibam que para os lados de Vila Franca há uma fábrica de rolamentos. Mas talvez não saibam que as esferinhas vêm de Espanha e ali só as metem nos aros.

E a SIC estava a dar, em directo, o resultado de um camião TIR, com 100 milhões dessas bolinhas, se ter virado na A1! E lá se via o meu correspondente telefónico, bem na dianteira de um pelotão de carros (meus futuros clientes, previsivelmente!) a rodopiar e a deslizar...

«Hum...» - matutei - «Estão quase a chegar à portagem de Alverca... Talvez alguns passem, mas a maioria fica logo ali encalhada... O melhor é ir já para lá!».

E, deliciado, ainda comentei para mim mesmo:

«Mas, à mistura, vai haver muitos que vão ser multados por passarem na portagem sem pagar!»

E esperei mais um pouco, só para ver essa parte da fita...

- Bingo! - berrou o nosso homem ao telefone ao mesmo tempo que dizia adeus para o helicóptero... - Passei na portagem certa! Sabe? É que eu tenho Via Verde!

NOTA FINAL: A chamada voltou a cair. Pus o reboque em movimento, e fui andando para aqueles lados. O que não me iam faltar era clientes, mas o que me ligara tinha prioridade total. A certa altura, como eu esperava, ligou-me novamente. Desta vez - que maravilha! - ouvia-se em perfeitas condições:

- É natural que agora se oiça bem - comentou ele - Estou aqui estampado, mas tive muita sorte, pois foi contra uma antena do meu operador!

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4 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Para desenjoar da política, de vez em quando publicarei aqui alguns textos de ficção.

Este(que aqui teve pequenas adaptações) foi publicado na revista «Internet Prática», na série de histórias «Serapião, o Sabichão» que, com muitas outras histórias, está também em:
www.janelanaweb.com/humormedina

2 de junho de 2005 às 10:00  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Na altura da publicação desta história, escreveu-me um entendido em telecomunicações a corrigir o que se diz na última parte do texto:
«Por baixo de uma antena não é o sítio onde a propagação é melhor, muito antes pelo contrário».
Portanto, se calhar o Roque fez confusão: estampou-se contra uma antena da TMN mas estava a usar um telemóvel Vodafone...

2 de junho de 2005 às 10:13  
Anonymous Anónimo said...

UMA DELÍCIA!!

Um abraço
Duarte

2 de junho de 2005 às 11:32  
Anonymous Anónimo said...

Ainda pensei:

«Se o condutor vai a "rolar sobre esferas", o velocímetro do carro não funciona, ou funciona mal.
Como é que ele sabe que vai a 200 km/h?»

Mas depois li melhor: ele só diz que vai "a uns 200".
Imagino que, com a aflição, mesmo que vá só a 50 dirá isso!

C.E.

2 de junho de 2005 às 11:37  

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