8.7.05

«Acontece...»

“Conta p’ra mim”, RTP :
aquilo não foi mesmo uma nódoa ?

A PROPÓSITO do anúncio, em Córdova, do novo canal cultural de televisão ibero-americano que a Espanha vai lançar com parceiros brasileiros e latino-americanos, escrevi aqui, com argumentos e preocupação, que me fazia falta um sinal de que a nossa RTP estivesse atenta e preparada para saltar também para o chão largo da modernidade inteligente. Dizia eu que, sufocado que foi o projecto lusófono logo após a sua nascença na cimeira de São Luís do Maranhão e abortada a ideia estimulante de uma Academia da Língua Portuguesa, já só me restava agora ver passar por cima de Portugal o satélite do entendimento televisivo, em castelhano e português, entre Madrid e Brasília. Tudo isto eu aqui disse temer.

E eis que, logo na terça-feira passada, a RTP 1 que temos confirmou os meus piores presságios. Era 5 de Julho, data nacional em Cabo Verde. Um programa que emitiu em directo da praça principal da cidade da Praia pretendia celebrar trinta anos de independência. Deu um valente golpe de misericórdia ao que ainda me restava de esperança e alento.

Começo pelo fim. A emissão terminou com os trejeitos alfacinhas de um fadinho cantado por uma Ana Moura compreensivelmente hirta e obviamente deslocada. Ao ouvir esse fado final, imaginei como pudesse ter sido uma súbita transmissão da TV espanhola, a partir do nosso Terreiro do Paço, celebrando com vigorosos flamencos um aniversário da restauração da nossa independência. Olha se a TVE um dia se lembrava de vir a Lisboa montar um serão em directo para comemorar o nosso 1º de Dezembro e decidia acabar o programa com uma roda de populaça lisboeta fazendo figuração para uma série de “pasodobles”? Que tal para a estima dos portugueses? Que estalo não era, hein? Pois aquilo a que se assistiu, na terça-feira, pela antena 1 do serviço público de televisão de Portugal, não foi menos leviano, nem menos confrangedor.

Para essa emissão internacional de lusofonia em Cabo Verde, algum iluminado da RTP concebeu um “pastiche” televisivo e escolheu um animador de antena exuberantemente impreparado, tão seguro de africanidade como de esteroides em Marte. Jorge Gabriel, que considero um profissional estimável (mau grado o desgosto de ver a sua cara num “spot” comercial bacoco que não lhe acrescenta prestígio algum), foi para a capital de Cabo Verde com a mesma lógica das suas “Praças da Alegria” numa qualquer aldeia do Minho. E isso resultou muito, muito estranho. Inusitadamente superficial, vezes sem conta o apresentador estendeu o microfone e pediu às pessoas “conta p’ra mim”, “conta p’ra mim”, como se estivesse numa festa popular em pleno Leblon, Rio de Janeiro. E vi-o sem aquela candura agradável que sabe ter muitas vezes, sem o rumo inteligente que sabe imprimir às suas entrevistas, sem o respeito não paternalista com que geralmente fala aos humildes que vão ao seu estúdio do Porto. Notoriamente fora de sítio, o condutor da emissão perdeu-se, fez apelo a tiques, surgiu gritado, pouco à-vontade, gesticulante, sorrisos a despropósito, força p’rá frente que o público engole tudo. À sua volta a multidão conversava entre si, os meninos brincavam, raquíticos pares fingiam dançar e a noite fluía, fluía pegajosa, alheada das câmaras.

Sempre no registo do tal “conta p’ra mim”, uma construção pueril tão arredada da maneira comum como os portugueses e os caboverdianos conversam, Gabriel ia dando mostras de desconhecer os géneros de música da tradição do país e perguntava, candidamente, o que se toca e dança em Cabo Verde. Na sua bagagem, nem sombra de Travadinha, de Luís Morais, de Norberto Tavares, nadinha. Aquele Vasco Martins, de que a RTP tem um documentário fabuloso, em que cabeça estaria guardado? Sequer os idos Finaçom, por deus! E quando, durante o programa, um genuíno tocador caboverdiano se emocionou com a memória de ter cantado ali mesmo, no próprio dia 5 de Julho da independência, foi mandado rapidamente para as urtigas. O homem bem quis balbuciar ideias sentidas, como a sua pátria e liberdade, talvez bonitas, talvez desencantadas, nunca o saberemos. Mas foi sumariamente mandado calar. Era, aquele homem, ali, demasiado autêntico. A RTP 1 que temos incomoda-se com essa coisas. Inquieto, temendo pelas audiências, o animador lançou vários “hoje é festa!”, “hoje é festa!” sempre que algum depoimento se tornava mais interessante ou mais construído. Estava Jorge Gabriel muito longe de perceber que aquela festa de 5 de Julho, gerada no Quartel do Carmo de 74 e cozinhada na Argel de 75, não era a dele. Não era o arraial chineleiro que a RTP de 2005 o tinha mandado fazer.

De escritores, também nada. A “Claridade” nunca existiu no conhecimento de quem preparou esta noite RTP 1. Nem o autor do Testamento do Senhor Napomuceno, que outra RTP ajudou a transformar em bom cinema. Nem as edições antológicas que o notável e esquecido português João Nuno Alçada conseguiu produzir naquela mesmíssima cidade da Praia. Nada. E de pintores, o que houve? Uns quantos tímidos diálogos vazios, roçando a promoção comercial. A RTP de Jorge Gabriel não se deu conta, não estudou, não soube, passou ao lado, não teve unhas, estava contentinha na sua pele.

O locutor estava ali para estender o microfone pedindo às pessoas que mandassem beijinhos para Portugal. E as pessoas mandavam beijinhos para Portugal e riam-se muito e faziam adeus para as câmaras. O guião mandava “agitar” a emissão e o apresentador lá estava, de cadeira em cadeira, ora perguntando a uma velha senhora se alguma vez tinha namorado um português, ora falando paternalmente com crianças ensonadas - enchendo tempo, entornando o tempo, secando vida. Finalmente, uma triunfante oferta de viagem à Lusitânia, feita a uma crioula velhinha que nunca veio a Portugal. Momento fortíssimo. E que maravilhas há-de a gentil senhora vir conhecer ao país de Jorge Gabriel? Pois (pasme-se!) o próprio estúdio onde o programa “Praça da Alegria” todos os dias é feito! Um frémito corre pela lusofonia inteira. Comovidos, abraçaram-se o apresentador e a feliz contemplada. Magnânimo e terno!... Patético!

Tudo isto em horário nobre, note-se. Ora quanta atenção tem dado a RTP 1, nos seus telejornais, na sua programação normal e nas suas iniciativas de produção, aos países da lusofonia? Da independência de Moçambique, celebrada há poucos dias, o que fez a RTP 1 em reportagens e em serões especiais? E da Guiné-Bissau, o que nos dá a o primeiro canal quando não há tropas em motim nas ruas? E de Angola, o que aproveita, editorialmente ao longo do ano inteiro? E do Brasil, se não há tiros nas penitenciárias, portugueses mortos no turismo nordestino ou negócios de jogador de futebol, o que se vê do Brasil na informação do canal 1 da RTP?

Custou-me deveras ver o nome de Isabel Silva Costa metido neste atalho, ela que é uma das mais cultas, seguras e esclarecidas jornalistas da casa e a quem, certamente, não pode ser feito o menor reparo pela mediocridade que reinou. Tudo o que não lhe passou pelas mãos resultou confrangedor, à dimensão exacta da genial cabeça que planeou um “fait divers” de supermercado para ser visto na Cova da Moura e arredores.

Na terça-feira à noite o diabo justiceiro foi mesmo a tal matriz, ausente, de uma independência a merecer festa inteligente, de cultura e de diáspora. Se a TV de Portugal queria lá estar, teria de ser assim e não como foi. Teria de estar como companheira, não como anfitriã. O diabo é o paternalismo ignaro com que alguns “tugas” se arrogam ser ligeiros para com tradições e referências de povos que eles ignoram ou desconhecem. O diabo é a displicência com que as antenas do serviço público de televisão se usam para transmitir vacuidades totais e inenarráveis momentos de beijinhos, abraços e saudades pr’á minha prima e “como te chamas tu, menino, diz lá quantos anos tens”. O diabo foi o dislate e a insensatez daquele fadinho “muito queque” a rematar um serão televisivo na pátria da morabeza.

… Vejam bem: no fundo, temo que o diabo seja ainda mais perverso e se chame, simplesmente, mediocridade. Portanto, força, Madrid! Avança tu com o teu robusto canal cultural diário por satélite, em castelhano e em língua portuguesa. Faz o projecto que anunciaste em Córdova e depois “conta p’ra mim” como foi.

Entretanto, nós, por cá, andamos nisto.

Carlos Pinto Coelho, «A Capital» 8 Jul 05

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

O Carlos Pinto Coelho é agora um comentador experiente e conhecedor mas porque não me aparece ele também no meu televisor? Quem o tirou do Acontece já cá não está. Porque os novos senhores não vão buscar o CPC a casa?

8 de julho de 2005 às 09:58  

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