21.8.05

O velho e o fogo; a seca e o tonto

I
SE PERGUNTAREM a diversas pessoas como é que se caracteriza uma situação de seca, a resposta variará conforme as respectivas vivências:

Um agricultor que a sofra na pele não precisará de palavras – bastar-lhe-á apontar para os campos e, eventualmente, para o gado ou para alguma fonte ali perto.

Alguém com mais conhecimentos dirá que é uma situação quantificável: tem a ver com a percentagem de humidade no ar e nos solos, com o número de dias com chuva, com os milímetros de precipitação, com o caudal dos rios, com a percentagem de enchimento das barragens e com o seu nível – tudo valores que são traduzíveis em números e que nada têm a ver com opiniões nem palpites.

Um tontinho limitar-se-á a abrir a torneira. Se tiver água para beber ou para o duche, concluirá que não há seca nenhuma, e ainda se rirá dos outros que, para ele, não passam de pataratas que andam à solta por aí.

II

RELACIONADO um pouco com isso tudo, vejam lá o que me sucedeu:

Estando eu, um dia destes, a passar um fim-de-semana numa aldeia da Beira-Baixa, coube-me a tarefa de levar três pessoas, de carro, a Castelo Branco. E, como ainda sobrava um lugar, pediram-me que fosse também connosco um senhor muito idoso, pai de uma delas, para que não ficasse tantas horas sozinho.
Ora, íamos nós a meio da viagem pela A23, quando começámos a ver o céu completamente escuro devido ao fumo de vários fogos que lavravam ao longe. Porém, quando se comentou o facto, o ancião interrompeu o silêncio a que até aí se remetera e sentenciou:

- Não é fumo, não senhor. Aquilo são nuvens, e ainda bem, que a chuva faz muita falta, meu Deus-do-Céu!

Houve sorrisos cúmplices mas, apesar das chamas e dos helicópteros que se viam ao longe, ninguém o contrariou.
Chegados ao destino, comentei com os outros que o Sr. Gregório (é assim que se chama o simpático velhinho) bem podia ir para o Governo, não só porque agora há a ideia de que “a idade não interessa”, como também porque por aqueles lados devem apreciar pessoas como ele - para desvalorizar o problema dos incêndios e, se for possível, garantir que não existem.
E, no meio da galhofa que essa observação provocou, referi ainda, sem entrar em pormenores, um cavalheiro que se tem destacado a garantir que a seca, em Portugal, é apenas um mito criado pelos media para encher horas de TV, como o arrastão.

As pessoas ficaram a olhar umas para as outras e para mim mas, como pareceram não ter percebido, mudei de conversa.
E estava tudo muito bem se eu não tivesse ido, no dia seguinte, à taberna da aldeia comprar uma bilha de gás.
Reparei que, ao contrário do habitual, as pessoas presentes me olhavam de esguelha. Não percebi porquê mas, em vez de perguntar se se passava alguma coisa, resolvi oferecer um copo a todos. Para meu grande espanto – dado que isso sucedeu pela primeira vez em muitos anos -, ninguém aceitou!

Desorientado, virei-me para um homem com quem tenho mais confiança e perguntei:

- Passa-se alguma coisa? – mas ele nem tugiu nem mugiu.

Perguntei o mesmo a outro e a outro, e todos evitaram responder-me!
E acabou por ser a dona da taberna quem me esclareceu:

- Dizem para aí que vocemecê anda a escrever nos jornais que a seca não existe, por isso estão todos furiosos consigo...

Ao perceber a origem do problema, senti-me como se me tirassem um peso de cima! Dei uma gargalhada, corri para o carro a buscar o jornal onde vinha a tal patacoada, abri-o na página em causa e mostrei o artigo a toda a gente, explicando em poucas palavras a origem do mal-entendido. Um dos presentes, embora desconfiado, lá espreitou e, embora com alguma dificuldade em perceber o texto, confirmou tudo o que eu dizia.
O ambiente distendeu-se, todos aceitaram os copos cujo oferecimento renovei, e um dos homens perguntou-me, já alegre e descontraído:

- Olhe lá, esse gajo que escreveu isso é seu conhecido? - devia saber que não, pois prosseguiu sem esperar a resposta:

- É que, se fosse, você podia convidá-lo a vir aqui à aldeia ver como estão as coisas!

E foi nessa altura que um outro, mais brincalhão, provocou a gargalhada geral:

- Que ideia! Então íamos lá convidar o homem? E o que é que lhe dávamos de comer, se mal temos pasto para as alimárias cá da terra?