21.11.05

Terra redonda

QUANDO era muito jovem e estudava as primeiras letras, ouvi pela primeira vez falar das provas da esfericidade da Terra. As provas clássicas, que vinham dos Gregos... os mastros dos navios no mar, os eclipses... Na altura achava tudo idiota. A Terra é esférica, toda a gente o sabe. Não há fotografias tiradas do espaço que mostram que vivemos numa gigantesca bola? Que ensino tão antiquado...

Há dias, pessoa amiga disse-me que essas provas ainda hoje se aprendem na escola. Ou, pelo menos, em algumas escolas. Conversámos um pouco sobre o assunto e dei por mim a mudar de opinião. Afinal, vale a pena conhecer as provas clássicas. Não só para tomar contacto com a argúcia dos antigos — o que é importante — mas, sobretudo, para verdadeiramente perceber que a Terra é esférica. Ou seja, para incorporar essa ideia no nosso dia-a-dia.

Sequência de eclipse lunar

Fases da Lua (V. «Comentário-2»)

Aprendem-se coisas na escola e aprendem-se coisas na vida, mas a ligação é deficiente. Muitas pessoas têm dificuldade em aplicar os conhecimentos. O que aprendem em matemática, em física, em história, ou no que seja, fica num compartimento estanque do cérebro e não se transfere para a vida.

Não se conhece uma solução milagrosa para realizar esta transferência — e o problema continua largamente em aberto em psicologia e pedagogia. Mas uma coisa é óbvia: quanto mais ligações entre o ensino e a vida a escola estabelecer, mais facilitada essa transferência fica.

As provas gregas da esfericidade da Terra têm esta grande vantagem: são verificáveis por qualquer um. Não é preciso ir ao espaço e tirar uma fotografia à Terra, coisa que praticamente ninguém pode fazer. Basta saber olhar à volta. Basta aprender a ver no mar, no ar e no céu os sinais da Terra redonda.

Aristóteles (384–322 a.C.) listava duas observações decisivas: a visão do firmamento ser diferente em diferentes latitudes e a forma circular da sombra da Terra sobre a Lua durante os eclipses. Nenhuma destas provas é fácil de realizar, mas ambas estão ao nosso alcance. A primeira obriga a viajar e observar. Será preciso, no mínimo, viajar do norte ao sul do país para se começar a perceber que há estrelas que num local se vêm a roçar o horizonte e noutro aparecem um pouco mais acima. Em alternativa, pode-se medir a altura da estrela Polar, que no Minho é uns quatro graus superior à do Algarve. O horizonte não está no mesmo plano nos dois locais. Seguimos a curvatura da Terra ao viajar de um lado para outro e, por isso, muda o céu que vemos.

A segunda prova de Aristóteles obriga a esperar por um eclipse lunar. Nessa altura, vê-se que a sombra que a Terra projecta sobre a Lua tem «a fronteira sempre convexa», como dizia Aristóteles. A Terra tem de ser redonda.

Estas e outras provas eram consideradas tão decisivas que o sábio romano Plínio o Velho (23–79 d.C.) dizia que a forma esférica da Terra «é o primeiro facto acerca do qual há um acordo generalizado». Não foi pois Cristóvão Colombo quem mostrou que a Terra é redonda, como por vezes se afirma. Já quase toda a gente culta o sabia desde a Antiguidade.

Mas há outras provas ainda mais interessantes, apesar de menos conclusivas. A minha prova favorita apenas necessita de um pôr do Sol junto ao mar e de nuvens. Depois de o Sol mergulhar no oceano, há nuvens que se mantêm iluminadas pelos raios vermelhos da nossa estrela. Estão mais altas que nós e o Sol ainda as alcança. E isso acontece em qualquer local. O oceano tem de ter uma curvatura.

Sabe bem ver a esfericidade da Terra ao pôr do Sol.

Nuno Crato - Adapt. do «EXPRESSO»
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NOTA: As imagens de António Cidadão aqui reproduzidas correspondem a uma sequência de fases da Lua e a uma sequência de imagens de um eclipse lunar. Em ambas é nítido o terminador, isto é, a linha de separação entre a parte iluminada e a parte escura. Nota-se uma diferença entre as duas sequências. Como dizia Aristóteles, no caso do eclipse o escurecimento é sempre convexo. Nas fases da Lua, pelo contrário, o escurecimento é côncavo quando a Lua está escurecida a menos de metade e convexo quando está mais obscurecida do que iluminada.

Na sequência de fotografias do eclipse lunar, aqui justapostas, pode-se ainda estimar o diâmetro da Terra por comparação com o da Lua.

Agradece-se ao professor António Cidadão (APAA) a cedência das imagens.

N.C.

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3 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

O blogger não está a permitir ampliar a 2ª imagem (a da lunação).

Tenho-a comigo, pelo que poderei enviá-la a quem ma pedir.

Basta enviar 1 mail para medina_ribeiro@netcabo.pt escrevendo em assunto "LUNACAO"

21 de novembro de 2005 às 22:26  
Anonymous Anónimo said...

"...Aprendem-se coisas na escola e aprendem-se coisas na vida, mas a ligação é deficiente. Muitas pessoas têm dificuldade em aplicar os conhecimentos. O que aprendem em matemática, em física, em história, ou no que seja, fica num compartimento estanque do cérebro e não se transfere para a vida.
..."

Sorte para quem teve "PROFESSORES"

22 de novembro de 2005 às 02:08  
Blogger Dinada said...

Nuno Crato não se lembrará de mim. Mas eu lembro-me dele. Em 1980, Liceu Raínha D. Leonor, disciplina de jornalismo.
Foi meu professor.

Encontrá-lo agora aqui, na blogoesfera, não deixa de ser curioso.

Cumprimentos!

22 de novembro de 2005 às 09:16  

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