CAPITALISMO TOTAL (*)
TAL COMO previa e temia o grande economista norte-americano Thorstein Veblen há quase um século (1908), ao salientar os desajustamentos entre a produção industrial e a especulação financeira, o capital industrial acabou por ser absorvido e dominado pelo capital financeiro. É este que, na era da globalização, comanda a economia real e dita as suas leis ao mercado, à política, ao Estado-nação e a cada cidadão esquizofrenicamente dividido entre os papéis de consumidor, de trabalhador e, às vezes, de accionista.
Num pequeno livro publicado há poucos meses, significativamente intitulado Le capitalisme total (Seuil), um antigo banqueiro e gestor de empresas, Jean Peyrelevade, explica com clareza que o capitalismo moderno está organizado como uma gigantesca sociedade anónima, uma sociedade de proprietários igualmente anónimos. Na sua base, cerca de 300 milhões de accionistas, 90 % dos quais concentrados na América do Norte, na Europa Ocidental e no Japão, controlam a quase totalidade da capitalização bolsista mundial. Regra geral de meia idade, com formação superior e um nível de rendimentos elevado, esses accionistas anónimos confiam cerca de metade dos haveres financeiros que possuem a várias dezenas de milhares de gestores por conta de outrem, cujo único objectivo é o de enriquecer os seus mandantes, tirando partido da mundialização.
Não pondo em causa o natural desejo de enriquecimento e a legítima vontade de empreender e de prosperar, o problema é que a fronteira que separa estes propósitos da pura cupidez é sistematicamente ultrapassada. Dado que as bonificações e stock options de que podem beneficiar dependem dos resultados obtidos, esses gestores pagos a peso de ouro sentem-se impelidos a alcançar performances cada vez mais surpreendentes em prazos sempre mais curtos. O desejo de ganhos ilimitados transforma-os em predadores. Taxas de rentabilidade do capital da ordem dos 15 a 20 %, só para distribuir dividendos, são totalmente absurdas, irrealistas e insustentáveis a longo prazo. Os lucros obtidos em bolsa, graças à especulação financeira, correspondem cada vez menos ao valor real das empresas e raramente são contrapartida de bens produzidos ou serviços prestados.
Os «verdadeiramente ricos» (high net worth individuals) e os «ultra-ricos» (ultra high net worth individuals) afastam-se cada vez mais do resto da população mundial. Só 77 mil famílias ultra-ricas (menos de um por cento das verdadeiramente ricas) detêm 15 % da riqueza mundial, ao passo que 50 % dos trabalhadores do planeta (1,4 milhares de milhões de famílias e 2,8 milhares de milhões de indivíduos) vivem com menos de dois dólares por dia. O capitalismo total é um capitalismo sem projecto e sem preocupações sociais, dominado pela «execrável sede do ouro» (Virgílio). Ora, como diz Peyrelevade: «O actual modo de vida ocidental não é generalizável ao conjunto do planeta: 20 % dos seus habitantes já consomem 80 % dos seus recursos». Resta esperar pela pancada.
(*) Crónica de Alfredo Barroso no «DN» de hoje (não está online), aqui transcrita com sua autorização.
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2 Comments:
Curiosidade:
No fim do texto lê-se:
«...20 % dos seus habitantes já consomem 80 % dos seus recursos».
Esta relação 20/80 versus 80/20 chama-se Lei de Pareto. Curiosamente, aplica-se a muitas outras situações.
Pois pois...!!! o bote continua a encher, mas para remar são sempre os mesmos.
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