28.11.06

A força do exemplo

ou o que fui aprendendo e reaprendendo enquanto lia os escritos pedagógicos do velho mestre
O MEU PROFESSOR de Física nasceu há 100 anos e esta data é comemorada em todo o país. O que este facto me espantaria se alguém mo tivesse predito quando Rómulo de Carvalho ainda era meu mestre! Assim passam os anos. A vida marca-nos e há pessoas que deixam traços fortes. Entre eles existiu esse professor singular. Um homem que, cada vez que recordamos, melhor percebemos como nos marcou. Era poeta, era professor, era conselheiro, era divulgador que se lia com invulgar prazer. Nele havia traços de personalidade tão raros e tão surpreendentes que marcaram pelo exemplo todos os que tiveram o privilégio de com ele terem convivido.
Muitos desses traços de personalidade têm sido referidos repetidamente. Outros têm sido omitidos ou menos bem realçados. Entre estes últimos, salientam-se a sua discrição, por vezes tão severa que parecia distância, o método, tão rigoroso que podia parecer mecânico, e a concentração, tão absoluta que podia aparentar ser a partição de uma personalidade que sabemos, afinal, ser sempre una nas suas múltiplas facetas.
Tudo isso marcou os seus alunos. E a forma como o fez pode ser apreciada relendo os seus escritos. Assim me aconteceu recentemente quando decidi ler o que Rómulo de Carvalho escreveu sobre pedagogia e didáctica. Como muitos, tinha lido as suas obras de divulgação, as suas poesias e alguns dos seus trabalhos históricos. Também como muitos, tinha folheado o livro que escreveu para o filho sobre a história de Portugal, tinha observado o seu álbum fotográfico de Lisboa e tinha lido algumas das suas notas sobre acontecimentos da actualidade. Mas, apesar de ter consultado repetidamente a sua História do Ensino em Portugal, nunca tinha lido com cuidado os seus escritos pedagógicos. Reparei que esses escritos continuavam dispersos por publicações antigas e que não estavam facilmente acessíveis. Fui procurá-los e fui lê-los. Gostei tanto deles que tive o privilégio de conseguir o acordo dos herdeiros para seleccionar alguns e para organizar uma pequena antologia, agora saída com a chancela da Gradiva e com o sugestivo título «Ser Professor».
Em tudo se nota a mão do mesmo mestre. A circunspecção, a escrita corredia, as frases claras e directas, sem rodeios, dizendo o que tinham a dizer e nada mais. O equilíbrio e o acerto. Mas o mais surpreendente é a actualidade dos seus juízos. Completamente contrário à triste moda, então apenas adivinhada, do «ensino centrado no aluno», Rómulo de Carvalho reafirma que o professor é «o método, o processo, a forma e o modo» («Ser Professor», p. 52). Abertamente crítico da confusão entre ensino e investigação, o velho professor sublinha que uma coisa é «a Física como ciência; outra coisa é a Física como objecto de ensino» (p. 41). Em contraste com as visões mais dogmáticas da «escola activa», sublinha que ensino tem necessariamente de ser ao mesmo tempo activo e passivo. Em oposição às confusões construtivistas, fala do «fosso que separa a experiência da respectiva indução» (p.50), reconhecendo que o ensino não é mais, na melhor das hipóteses, do que uma redescoberta activa guiada.
O que talvez seja mais saliente na prática e reflexão pedagógica de Rómulo de Carvalho é o seu equilíbrio. Há rigor, mas acompanhado do desenvolvimento da intuição; há objectivos pedagógicos exigentes, mas também a preocupação de despertar o interesse dos alunos; há a experimentação, mas com a consciência das suas limitações; há o destaque da compreensão teórica, mas também a tentativa de ligar a escola à vida.
Não foi sem alguma surpresa que notei a perspicácia premonitória de Rómulo de Carvalho e me foi fácil aderir à sua visão equilibrada do ensino. As ideias pedagógicas do meu professor de Física tinham-me ficado na alma e no ânimo pela força do seu exemplo. Foi há muito tempo. Foi há 40 anos. Ou foi ontem?!

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