24.11.06

O MONTE TESTACCIO

PASSEI A ÚLTIMA semana de 2002 em Roma, alojado à beira do Tibre, em casa da minha irmã, no Lungotevere Portuense. E todas as manhãs podia ver, da janela do meu quarto, uma colina com uns bons 50 metros de altura - o monte Testaccio - que se ergue do outro lado do Tibre, na margem esquerda. É um monte de cerâmica constituído pelos cacos de cerca de 53 milhões de ânforas - sobretudo dos séculos II e III e principalmente oriundas da província Bética, no Sudoeste da Hispânia - que serviram para transportar à roda de seis mil milhões de litros de azeite, importados de além-mar por Roma.
Tinha à frente do meu nariz um sítio de grande importância histórica, mas só me dei conta da sua relevância quatro anos depois, ao ler o magnífico ensaio sobre A Queda de Roma e o Fim da Civilização, do arqueólogo inglês Bryan Ward-Perkins. De facto, o monte Testaccio é uma das provas mais palpáveis do esplendor e poder de irradiação da Roma imperial. O seu nível de desenvolvimento económico, a capacidade de produção, em quantidade e qualidade, das suas industrias, a organização e extensão das suas redes comerciais, permitiam a movimentação de produtos numa escala gigantesca, bem como a manufactura de recipientes de elevada qualidade para o fazer. A arqueologia dos cacos de cerâmica demonstra-o. Daí a importância e o significado do monte Testaccio.

A tese que Ward-Perkins defende, baseado em investigações desenvolvidas e em provas concretas, é a de que as invasões dos povos germânicos no século V provocaram a «crise», o «declínio» e a «queda» da civilização romana e não apenas um período mais ou menos longo de «transição», «mudança» e «transformação», como sustentam vários historiadores politicamente correctos. Não houve mera «acomodação» entre invasores e populações da Roma imperial: «os efeitos a longo prazo da dissolução do império foram dramáticos». A sofisticação antiga deu lugar à pobreza material e intelectual e a perícia técnica perdeu-se com a desintegração económica, política e militar do império romano. Coisas notáveis que os romanos tinham produzido em larga escala, antes da queda, «não conseguiram ser de novo feitas durante muitas centenas de anos», depois da queda.
Aliás, bem mais do que a vulnerabilidade militar e a incompetência política, é «o perigo da especialização» que Ward-Perkins aponta como razão crucial da «enormidade da desintegração económica que ocorreu no final do império». Da mesma forma que no mundo ocidental de hoje, «a complexidade económica tornou acessíveis as mercadorias produzidas em massa, mas também tornou as pessoas dependentes de especialistas e de semi-especialistas - trabalhando por vezes a centenas de quilómetros de distância - para muitas das suas necessidades materiais». Falhada a produção especializada e destruídas há muito a perícia e as redes locais, já não havia auto-ajuda eficaz para as suprir. A lição é clara: cautela com as montanhas de lixo de qualidade, como o monte Testaccio!

Publicado no «DN» de 24 Nov 06

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