10.2.07

Os pequenos jeitosos

O jeitoso arranja.
Nós falamos ao sujeito e ele arranja o bilhete que já não havia, a consulta impossível para o Dr. Saavedra, a autorização para a marquise proibida pela lei.
Se fôssemos nós a tratar, tudo seria perigoso, árduo, complicado.
A marquise é, no entender do fiscal, uma perigosíssima construção que vai pôr em causa o equilíbrio ecológico e a saúde mental dos pombos do Bairro de Campo de Ourique; o Dr. Saavedra nunca poderia – está num congresso no Japão; e o bilhete pura e simplesmente não há, nunca haveria.
Não sei o que seria deste país sem os jeitosos. No funcionamento geral e corrente das coisas. Pois nos impostos o jeitoso normalmente não existe, está oculto numa nuvem espessa e densa de limbo ilibante e indeclarado.
Resultado: - nós pagamos para que os jeitosos existam e nos tramem.
Revolta-me. Porque pagamos muito. Demais. Pela saúde; a instrução; a justiça.
Eles têm soluções espantosas; eles ajudam em situações inverosímeis; eles ganham a vida sem se perceber como. Dá a sensação de que o jeitoso só de respirar já está a ganhar dinheiro. E transmite-nos também a sensação de que as leis não existem bem para ser entendidas à letra, pois é a letra da lei quem deve adaptar-se à realidade.
Porque a realidade para o jeitoso é sempre simplex.
Ele vive na margem doutro viver. E afinal tem os mesmos direitos. Julgo.

***
Ora estava eu aborrecido com a vida cultural que não avança neste país, preocupado, como já vos escrevi, por a Dadinha Bibá não fazer as pazes com a Condessa de Alcafache e outros assuntos que me levaram a refugiar no trabalho, coisa que, como é sabido, só devemos fazer em caso de última necessidade...
Deitava até, por sinal, contas à vida. Quando.
…Eis que recebo por correio registado uma carta da contabilista a dizer que tenho de ter muito cuidado senão levo uma multa que me provocará gaguez para o resto da vida, pois ainda não abri a minha conta empresarial. Tenho tudo misturado, eu sabia lá, paciência, vou já tratar disso, os milhões de lucro que me dá escrever aqui, os senhores imaginam… que grande vígaro! A escrever em blogs milionários! Pois! Assim é que se fazem as grandes fortunas!...
Comecei a perguntar a colegas mais jeitosos do que eu no ramo do lóbi, do marketing e da contabilidade e ninguém tinha feito nada também, nem nunca tinha sido intimado ou prevenido. Enfim. Como o respeito é muito bonito, para a semana vou tratar de mais essa complex
E o mundo cheio de um outro tipo de jeitosos que ninguém incomoda. Conheço até um sujeito da minha idade que só muito recentemente adquiriu número de contribuinte. E vários que nunca pagaram impostos na vida. Gente que nunca declarou actividade alguma, párias aparentes de uma sociedade ímpia e estranhamente tolerante para os mais evidentes estratagemas e tão impiedosa para nós, pobres e sempre perseguidos, preocupados e cumpridores.
As marinas cheias de iates. Viva o off shore. Viva Casablanca. Viva Marbella.
Aliás, cheguei com o tempo à conclusão de que esses jeitosos é que sabem.
Nada de especial me move, com efeito, contra a etnia cigana. Deu-nos raça, alma, feiras de Carcavelos, Quaresmas de qualidade, sapatos e relógios de contrafacção para satisfazer a nossa vaidade e Paco de Lúcia, entre tantos outros. Bastava.
Mas no outro dia almoçava na esplanada de uma velha tasquinha almadense e alguns amigos entretinham-se conversando bonancheiros com um cigano – eram aparentemente velhos conhecidos – que se queixava de ser pobre e não ter onde cair, sempre de terra em terra, enfim, as queixas habituais vestidas de preto e entrecortadas de muitos ais que os amigos de cor clara aproveitavam para ir puxando, para gáudio de todos e mais amena digestão de todos os presentes em fim de refeição.
Café e um cheirinho. Teatro de rua à borla. Sol de Inverno. Coisas de Portugal, povo, tascas, peixe assado, mil anos de sangramentos, miscigenação e tolerâncias – não se metam nisto. Sabores.
Às tantas, depois de contar as fugas à escola desde pequeno e outros heroísmos, o cigano confidencia ao funerário diplomado que lhe desafiava a intimidade:
- As mulheres nunca se lhes pode deixar passar acima do joelho. Esta – apontou para a mulher – no outro dia pediu-me um colar de oitocentos contos, imagine…
- E você?!
– Puxou o prestimoso funerário, zombeteiro e cúmplice.
- Eu?! Atão dei-lhe um de trezentos pois está visto! Eu sou parvo não?!
Falava verdade a negra figura. Jurou pela mãe. Todos sabemos que isso na etnia é sagrado e intocável. Ou não. Adiante.
Entretanto, diligente, a sobre cuja referida mulher, vestida de negra burka, qual Afeganistão, vendia perfumes dificilmente respiráveis por 5 euros a caixinha. Sem identidade certa, nem referência. Negócio de rua. Sem parar. Todos sorrindo.
Um gato espreguiçava-se ao sol. O dinheiro ia entrando nos entrefolhos de uma das muitas saias e por lá ficava. Quando se acabava o stock ia a um Mercedes estacionado em frente buscar mais.
(Sem os tais estudos, como teria carta legal este personagem de opereta buffa?)
- Ajudem por favor a pobre cigana… – chorava ela – são só 5 euros…
Sem recibo, claro. Na nossa cara. Com a conivência chapada num dia de sol de Inverno e amena cavaqueira da treta. O marido encostado a um poste continuava em conversa mole. Assim se fazem as cousas – escreveu Gil Vicente.
Eu diria mais: - Jeitosos.
Assim é tudo fácil. Pois.

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

"Jeitosos" ou "fura-vidas"! Gostei deste texto!
Abraço!

10 de fevereiro de 2007 às 17:24  
Anonymous Anónimo said...

O Pedro Barroso não é só jeitoso a cantar!

Pelos vistos tb é jeitoso a escrever...

10 de fevereiro de 2007 às 19:53  

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